O meu professor de violão amava João Gilberto de uma maneira que eu achava meio incompreensível: ele me mostrava, vibrando, aqueles acordes dissonantes que só mesmo o baiano genial conseguia criar. Aquilo fazia pouco sentido para mim, mas eu tentava: comprei alguns discos, e até gravei em cassete um show de João Gilberto que passou na TV. Mas não conseguia entender o que ele tinha de tão genial.
Tudo mudou quando fiz um estágio onde tocava a Rádio Ouro Verde o dia inteiro. Foi só então que percebi que as mesmas músicas interpretadas por outros cantores e pelo João Gilberto eram completamente diferentes: o baiano conseguia fazer algo perfeito, direto, sem um resquício de brega. Sim, a explicação de por que o João Gilberto é melhor que os outros é complicada para quem, como eu, não entende de técnica musical. Já li alguns críticos elogiando a maneira como ele fazia as frases, essas coisas; Zuza Homem de Mello, por exemplo, escreveu ontem (obrigado, Fábio Bianchini) que
“Ouvir João Gilberto requer aprendizado. Requer concentração apuradíssima para se usufruir de tudo ao mesmo tempo: precisão micrométrica do violão, a identificação das notas formando acordes, as sutis alterações harmônicas, o balanço rítmico irresistível, a destreza de seus dedos acertando as cordas do braço do violão, a posição da mão direita no jogo de vai e vem, a justeza equilibrada entre o volume do instrumento e da voz, a dicção impecável, a emissão na medida certa, a minúcia das quase imperceptíveis mudanças na divisão, as defasagens rítmicas e alterações melódicas, a argúcia dos silêncios, a supressão do supérfluo, a valorização dos esses, dos erres, das consoantes e vogais; do sentido das palavras, das profundas notas graves, a capacidade de fazer vir à tona a intenção do verso, a delicadeza em mostrar a música como nunca se ouviu antes.”
O trecho reproduzido acima faz pouco sentido para mim, sou obrigado a reconhecer. Só sei que João Gilberto cantava muito melhor que os outros, embora não saiba explicar bem por quê. Não importa.
Eu fui um viciado intermitente por sua música: lembro, por exemplo, quando a Valéria se queixou de que não aguentava mais ouvir aquele CD de MP3 só com músicas de João Gilberto no carro; ou quando eu comprava a revista Veja antes de ir para a faculdade, lia quase inteira no carro mesmo, ouvindo a fita de “João”, o disco de 1991; consegui até ir num show dele, muito tenso, e que descrevi aqui.
Agora ele morreu, ficamos um pouco órfãos, mas com esperança de que alguém libere alguma gravação de show, ou de telefone mesmo.
Descanse em paz, gênio da raça.
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