“Accident nocturne”, Patrick Modiano
Literatura

“Accident nocturne”, Patrick Modiano

8 de julho de 2018 0

“Tarde da noite, numa data longínqua, quando estava quase atingindo a maioridade, eu atravessava a Praça das Pyramides em direção ao Concorde quando um carro surgiu, vindo da sombra. Inicialmente eu achei que ele me tinha me roçado, depois senti uma dor viva do tornozelo até o joelho. Eu caí sobre a calçada.”

As frases acima são as iniciais de “Accident nocturne” (“Acidente noturno”, em português), novela publicada em 2003 por Patrick Modiano, Prêmio Nobel de Literatura de 2014 (Gallimard, 181 páginas). O narrador que, como se viu, é atropelado logo no início do livro, é então recolhido por um homem, “moreno maciço”, conhecido da moça que o atropelou, e é então levado para um hospital de alto padrão.

O narrador conta este e outros acontecimentos de sua vida – uma namorada, a procura por Jacqueline Beausergent (a moça que o atropelou), suas errâncias por Paris, seus pensamentos e hesitações, um outro atropelamento (este sofrido na infância), a relação complicada com o “moreno maciço” citado acima e com Bouvière, uma espécie esquisita de professor e palestrante – sempre de maneira vaga, imprecisa. A memória do narrador parece querer pregar-lhe peças o tempo todo, e ele chega a comentar que isso pode ser efeito do éter, a que foi submetido quando dos dois atropelamentos, e em outras ocasiões (imprecisas, como sempre) em sua infância e adolescência.

As peças que a memória prega é, provavelmente, o maior tema dos livros de Patrick Modiano, excelente escritor que teve algumas de suas obras comentadas por aqui. Só que normalmente essa memória imprecisa guarda segredos escabrosos de pessoas próximas aos narradores dos livros, frequentemente relacionadas ao colaboracionismo dos franceses com os invasores nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Em “Accident nocturne” o segredo escabroso parece ser a relação do narrador, aparentemente órfão de mãe, com o pai, ausente – para dizer o mínimo. A contracapa da novela, reproduzida a seguir, mostra um questionário respondido pelo narrador na escola, num dos trechos mais tocantes deste ótimo (mesmo que irritante às vezes) livro:

“Qual estrutura familiar você conheceu? Eu tinha respondido: nenhuma. Você guarda uma imagem forte de seu pai e de sua mãe? Eu tinha respondido: nebulosa. Você se julga um bom filho (ou filha)? Eu nunca fui um filho. Nos estudos que você fez, você tenta conservar a estima de seus pais ou a se adaptar ao meio social? Sem estudos. Sem pais. Sem meio social. Você prefere fazer a revolução ou contemplar uma bela paisagem? Contemplar uma bela paisagem. O que você prefere? A profundidade do tormento ou a leveza da felicidade? A leveza da felicidade. Você preferiria mudar sua vida ou recuperar uma harmonia perdida? Recuperar uma harmonia perdida.”

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