“A harmonia do mundo”, de Marcelo Gleiser
Literatura

“A harmonia do mundo”, de Marcelo Gleiser

29 de setembro de 2017 0

Marcelo Gleiser é o mais conhecido cientista brasileiro da atualidade. Além de dar aulas na renomada universidade americana Darthmouth College, suas pesquisas no ramo da astrofísica levaram-no a ganhar um prêmio do governo dos Estados Unidos em 1994. Mas o motivo de ele ser conhecido no Brasil está relacionado à sua atividade como divulgador científico: Gleiser mantém já há alguns anos uma coluna mensal no jornal Folha de São Paulo, publicou diversos livros – entre eles os ótimos O fim da terra e do céu e A dança do universo – e agora pode ser visto todos os domingos no Fantástico, da TV Globo, com o quadro Poeira das estrelas.

A nova investida de Gleiser é uma biografia romanceada do grande cientista alemão Johannes Kepler: A harmonia do mundo (Companhia das Letras, 327 páginas). Descobridor das três leis do movimento planetário – que descrevem a forma e a velocidade das órbitas dos planetas – que foram fundamentais para que Newton, mais tarde, descobrisse a lei da gravidade, Kepler (1571-1630) teve uma vida bastante conturbada, numa época de lutas entre católicos e protestantes.

O principal foco do livro de Gleiser é o tormentoso relacionamento entre Kepler e um professor da universidade em que ele estudou, Tübingen, chamado Maestlin, cujas brilhantes aulas defendendo o sistema copernicano (no qual a Terra gira em torno do Sol) marcariam decisivamente a carreira do grande cientista. A admiração de Kepler por seu mestre durou por toda a vida, mas, infelizmente, este era um covarde que jamais ousou defender publicamente seu brilhante pupilo e as suas – então perigosas e heréticas – idéias.

Na parte inicial do livro, Ludwig, filho de Kepler, vai até Maestlin para entregar uma encomenda que seu pai, falecido recentemente, tinha deixado para o antigo mestre: um pacote contendo os seus diários e diversas cartas. No restante do livro duas histórias são contadas em paralelo: em uma delas Maestlin lê o diário e as cartas de seu pupilo e se arrepende de ter sido sempre um pusilânime, enquanto que na outra o próprio Kepler é o protagonista e a trama é contada em terceira pessoa.

A vida de Kepler foi extremamente sofrida: teve de mudar de cidade diversas vezes para fugir de perseguições religiosas – o grande cientista alemão era protestante, e mais de uma vez um mandatário local católico obrigou os protestantes a saírem de sua cidade; perdeu vários filhos ainda crianças; sofreu críticas e perseguições de teólogos luteranos que viam a hipótese copernicana como heresia; chegou quase à miséria por não receber salários de seus empregadores nobres; passou maus pedaços sob as ordens do grande cientista Tycho Brahe, que fez as medições precisas das órbitas dos planetas que possibilitaram que as equações de Kepler fossem obtidas. Mas, mesmo nos seus maiores sofrimentos, Kepler jamais deixou de sentir uma fé profunda em Deus.

A primeira coisa que salta aos olhos no livro de Gleiser é que ele não é um livro usual de divulgação científica: o autor se concentra muito mais nos problemas históricos daquela conturbada época e na descrição psicológica dos personagens, principalmente Maestlin e Kepler, do que em analisar os processos científicos que fizeram Kepler chegar às suas imortais equações. Por tudo isto, o bem escrito A harmonia do mundo pode agradar àqueles interessados em história e literatura – e, porque não, até mesmo em ciência.

(Texto publicado em 2006 no suplemento dominical do jornal O Estado do Paraná)

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