É difícil não se lembrar da famosa a frase de William Shakespeare em Macbeth [“a vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria”] quando se lê Vernon God Little, do australiano – que viveu a maior parte da vida no México – DBC Pierre (Editora Record, 384 páginas). O romance, ganhador do Booker Prize de 2003, é contado em primeira pessoa pelo personagem principal, Vernon Gregory Little. Ele é o melhor amigo de Jesus, rapaz de origem hispânica que certo dia resolve atirar em vários colegas de escola e depois se suicidar.
Esse é um trauma horroroso para Martirio [pequena e imaginária cidade no Estado do Texas, Estados Unidos] e o começo de uma série inacreditável de problemas seriíssimos na vida do adolescente Vern. Se apenas indícios muito fracos sugeriam que ele fora cúmplice de Jesus no dia dos crimes, graças ao sensacionalismo da imprensa – e também à própria incapacidade intelectual do rapaz – foi armado um escândalo de proporções gigantescas, que acabam por levá-lo à prisão. Vernon é libertado mas seu processo vai ficando cada vez mais complicado à medida em que o tempo passa. Antes de ir para a cadeia de novo, ele foge para o México . E lá seus problemas só aumentam.
No desenrolar da história, a sordidez das demais personagens parece não ter limites. A mãe de Vernon [viúva do pai do garoto] é uma pessoa de uma futilidade inacreditável, que se preocupa mais com o que as vizinhas vão pensar de sua geladeira nova do que com a terrível sorte que se abateu sobre o filho. Lally, o namorado dela, é um trambiqueiro em tempo integral que faz pontas como repórter e é literalmente capaz de qualquer coisa para aparecer na televisão – inclusive arranjar provas falsas para incriminar Vernon. As amigas da mãe do garoto são tão fúteis quanto ela. O primeiro advogado do rapaz é de uma incompetência atroz. Na verdade, raros são aqueles, em Vernon God Little, com algum resquício de caráter. Vernon, uma das poucas pessoas que “prestam” no livro, mal consegue entender o que está acontecendo ao seu redor. Ainda por cima, para proteger outras pessoas durante o processo, ele omite informações valiosíssimas e que poderiam deixá-lo em liberdade.
Por ser contado em primeira pessoa por uma personagem de poucos recursos intelectuais, a leitura de Vernon God Little é bastante atravancada em muitos pontos. Exemplo disto é a entrada de diversos personagens na história totalmente de supetão, sem qualquer apresentação prévia. Este estilo literário confuso é totalmente coerente com o tipo que Vernon é e a história, paradoxalmente, ganha muito com isto.
Mesmo que a maioria das personagens pareça caricatural demais, Vernon God Little é um livro cínico, ácido, de grande impacto. E altamente recomendado.
É interessante comparar o livro “cheio de som e de fúria, contado por um idiota” que é Vernon God Little, com o frio, racional e cruel Sujeito Oculto, do catarinense radicado em Curitiba Manoel Carlos Karam (Editora Barcarolla, 140 páginas). Assim como no longo A Construção, de Franz Kafka, o livro de Karam se resume na descrição em primeira pessoa, detalhista, obsessiva e racional do modo de viver da personagem principal. Se no conto do grande escritor tcheco esta personagem era um animal que vivia embaixo da terra, em Sujeito Oculto quem descreve o seu dia-a-dia é um assassino profissional.
O personagem de Karam trata o seu “serviço”, o tempo todo, como “trabalho”. Para se dar bem na profissão, a sua primeira obsessão é manter-se sempre oculto das pessoas – nunca olhar nos olhos dos outros, camuflar-se e passar desapercebido são cuidados que ele se obriga a ter em todos os momentos. Além disso, ele mora sozinho, não tem amigos nem conhecidos. Nem ficamos sabendo o seu nome. Ele pratica seu trabalho em silêncio, oculto, na calada da noite. Jamais tem problemas de consciência e, durante o desenrolar do livro pelo menos, consegue evitar problemas com a Justiça.
Se Vernon God Little é pleno de barulho, fúria e irracionalismo, por outro lado, Sujeito Oculto é feito de racionalidade fria e de um silêncio assustador.
(publicado originalmente no Mondo Bacana)
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