O único livro bíblico que consta da relação das 100 melhores obras literárias de todos os tempos do jornal inglês Guardian, publicada em 2002, é o Livro de Jó. O que faz a crítica não-religiosa preferir este aos demais livros bíblicos? Possivelmente é porque nele a tragédia do personagem principal se assemelhe à dos heróis míticos da Antiguidade greco-romana, vítimas de um destino inexplicável do ponto de vista humano.
Jó era um sujeito bom: o primeiro versículo conta que ele “era homem íntegro e justo; temia a Deus e evitava o mal”. Além disso, era rico, “o homem mais rico do oriente”. No versículo 6 do primeiro capítulo, a coisa começa a ficar estranha: certo dia os filhos de Jó vieram apresentar-se ao Senhor, e Satanás vem com eles. No versículo seguinte Deus lhe faz uma pergunta retórica da qual já sabe a resposta (como no caso de Adão depois do pecado original) : “De onde você veio? ” Satanás responde ao Senhor: “De perambular pela terra e andar por ela”.
Deus então relata para Satanás – com orgulho – as qualidades de Jó: “Reparou em meu servo Jó? Não há ninguém na terra como ele, irrepreensível, íntegro, homem que teme a Deus e evita o mal”. Satanás não se conforma: segundo ele, rico do jeito que era, era fácil para Jó amar a Deus. E complementa: “Mas estende a tua mão e fere tudo o que ele tem, e com certeza ele te amaldiçoará na tua face.” Deus aceita o desafio de Satanás que, a partir de então, teria a permissão em tocar e destruir tudo o que Jó tinha – menos na sua própria vida. Aí a coisa fica feia. Pragas e desgraças diversas destroem todas as propriedades de Jó e matam todos os seus filhos. O primeiro capítulo termina coma total submissão dele aos desígnios de Deus:
Então prostrou-se no chão em adoração, e disse: “Saí nu do ventre da minha mãe, e nu partirei. O Senhor o deu, o Senhor o levou; louvado seja o nome do Senhor “. Em tudo isso Jó não pecou nem de nada culpou a Deus. (Jó 1:20-22)
Com isto, Deus volta a vangloriar-se de Jó perante Satanás. Este não se dá por vencido:
“Pele por pele! “, respondeu Satanás. “Um homem dará tudo o que tem por sua vida. Estende a tua mão e fere a sua carne e os seus ossos, e com certeza ele te amaldiçoará na tua face. (Jó 2:4-9)
Deus continuava apostando alto em Jó, e respondeu a Satanás que este poderia fazer o que bem quisesse com ele, mas deveria poupar-lhe a vida. Jó então foi afligido com “feridas terríveis, da sola dos pés ao alto da cabeça” e passou a se raspar com um caco de louça. Isto foi o fim da picada para a mulher de Jó, que lhe diz: “Você ainda mantém a sua integridade? Amaldiçoe a Deus, e morra! “. Este responde: “Você fala como uma insensata. Aceitaremos o bem dado por Deus, e não o mal? “. Ainda neste caso, “em tudo isso Jó não pecou com os lábios”.
É quando três amigos, Elifaz, de Temã, Bildade, de Suá, e Zofar, de Naamate, chegam para conversar com Jó. O capítulo 3 apresenta a primeira queixa de Jó: ele amaldiçoa o dia do seu nascimento e lamenta o sofrimento presente:
Pois me vêm suspiros em vez de comida; meus gemidos transbordam como água. O que eu temia veio sobre mim; o que eu receava me aconteceu. (Jó 3:24-25)
O capítulo 4 até o 31 apresenta uma longa discussão entre Jó e seus três amigos. Jó se queixa amargamente:
Quando penso que a minha cama me consolará e que o meu leito aliviará a minha queixa, mesmo aí me assustas com sonhos e me aterrorizas com visões. Prefiro ser estrangulado e morrer do que sofrer assim; sinto desprezo pela minha vida! Não vou viver para sempre; deixa-me, pois os meus dias não têm sentido. (Jó 7:13-16)
Mais do que lamentar sua sorte, Jó se queixa diretamente de Deus:
Se eu pecasse, me estarias observando e não deixarias sem punição a minha ofensa. Se eu fosse culpado, ai de mim! Mesmo sendo inocente, não posso erguer a cabeça, pois estou dominado pela vergonha e mergulhado na minha aflição. (Jó 10:14-15)
Seus amigos, por outro lado, dizem que Jó deve se arrepender de seus pecados; que deve confiar em Deus, que é poderoso; que deve parar de blasfemar; que deve parar de questionar Deus e esperar por Sua bondade; que deve parar de ser arrogante e se achar mais justo do que o Senhor; que deve parar de lamentar a prosperidade dos injustos esperar a punição deles, que está a cargo de Deus. Para Elifaz, Bildade e Zofar, é um grande pecado a postura questionadora de Jó.
No capítulo 31, Jó comenta desafia qualquer um a provar que ele tenha sido injusto:
“Ah, se alguém me ouvisse! Agora assino a minha defesa. Que o Todo-poderoso me responda; que o meu acusador faça a acusação por escrito. Eu bem que a levaria nos ombros e a usaria como coroa. Eu lhe falaria sobre todos os meus passos; como um príncipe eu me aproximaria dele.” (Jó 31:35-37)
Com este discurso de Jó, Elifaz, Bildade e Zofar não têm mais argumentos. É quando Eliúde, mais jovem que os quatro, começa a falar já que “indignou-se muito contra Jó, porque este se justificava a si mesmo diante de Deus”. Mais do que isto, ele indignou-se com os três amigos com estas palavras:
Mas não é que nenhum de vocês demonstrou que Jó está errado? Nenhum de vocês respondeu aos seus argumentos. Não digam: ‘Encontramos a sabedoria; que Deus o refute, não o homem’. Só que não foi contra mim que Jó dirigiu as suas palavras, e não vou responder a ele com os argumentos de vocês. “Vejam eles estão consternados e não têm mais o que dizer; as palavras lhes fugiram. Devo aguardar, agora que estão calados e sem resposta?” (Jó 32:12-16)
Em seu discurso, que vai do capítulo 32 ao capítulo 37, Eliú exalta o Senhor e assegura que Ele fará justiça. No capítulo 38 Deus entra na conversa e começa a falar (“do meio de uma tempestade”). Ele não se queixa dos pecados de Jó, mas lhe pergunta se este, afinal tinha criado o Universo ou não:
“Onde você estava quando lancei os alicerces da terra? Responda-me, se é que você sabe tanto. Quem marcou os limites das suas dimensões? Vai ver que você sabe!” (Jó 38:4-5)
Deus continua falando do Seu próprio poder, e desafia Jó: “aquele que contende com o Todo-Poderoso poderá repreendê-lo? Que responda a Deus aquele que o acusa! ”. Jó então se humilha, diz que é indigno e que não tem mais o que responder. Deus continua falando do poder de um monstro da terra (Beemote) e outro do mar (Leviatã) que, mesmo extremamente poderosos, são menores do que Deus. Jó se mostra novamente arrependido.
Finalmente, Deus se mostra indignado com Elifaz, Beldade e Zofar, que não falaram o que é certo a respeito dEle, como fez o seu servo Jó. Mais ainda, eles têm que pedir perdão a Jó:
Vão agora até meu servo Jó, levem sete novilhos e sete carneiros, e com eles apresentem holocaustos em favor de vocês mesmos. Meu servo Jó orará por vocês; eu aceitarei a oração dele e não farei com vocês o que vocês merecem pela loucura que cometeram. Vocês não falaram o que é certo a meu respeito, como fez meu servo Jó. (Jó 42:8)
E Jó não só perdoou os seus amigos, como teve um final de vida mais próspero que o início, com maiores riquezas, sete filhos e sete filhas.
O fato é que é muito difícil entender o Livro de Jó. Mas fica claro, por exemplo, que o único pecado de Jó é discordar da justiça de Deus. Seus amigos, aparentemente, tinham vários outros pecados que ele não tinha, para que tivessem que lhe pedir perdão.
Ou é isto, ou é alguma outra coisa que nós, humanos, não conseguimos mesmo entender.
(textos bíblicos obtidos na Bíblia Online, versão Nova Versão Internacional – NVI)
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