John Fante: Bandini e eu
Literatura

John Fante: Bandini e eu

21 de fevereiro de 2016 0

Pergunte ao pó, lançado em março de 2006 nos cinemas do exterior e em junho no Brasil, foi dirigido por Robert Towne e tem Colin Farrel e Salma Hayek nos papéis, respectivamente, de Arturo Bandini e Camila Lopez. Os nomes do filme e dos personagens são familiares para quem conhece a obra do americano John Fante, que escreveu o romance homônimo em que se baseou o roteiro.

Tanto Pergunte ao pó quanto outros dois romances – Espere a primavera, Bandini e O caminho de Los Angeles – que têm Arturo Bandini (espécie de alter-ego do escritor) como personagem principal, se encontram em catálogo em edições da José Olympio Editora. O lançamento do filme pode servir como um bom estímulo para a leitura destes livros.

Espere a primavera, Bandini (208 páginas) foi o primeiro romance publicado por John Fante, em 1938, e também teve uma versão cinematográfica, dirigida em 1989 por Dominique Deruddere. O livro é uma espécie de versão barra-pesada de Aventuras de Tom Sawyer, clássico de Mark Twain: tanto um como o outro romance, apesar de escritos em terceira pessoa, são contados apenas sob o ponto de vista infantil, sem nenhuma espécie de “filtro” crítico adulto. A diferença é que, enquanto Twain conta aventuras típicas de crianças num tom mais para o engraçado do que para o trágico, o jovem Arturo Bandini de Fante tem uma vida para lá de complicada.

A família Bandini mora na pequena cidade de Boulder, no Colorado. O pai, Svevo, italiano de nascimento, é um pedreiro irascível, freqüentemente grosseiro e permanentemente insatisfeito com a sua vida difícil. A mãe, Maria, é uma típica dona de casa italiana, extremamente religiosa, e passa boa parte do livro com o rosário na mão. Arturo tem dois irmãos mais novos, August, bem-comportado e que pretende tornar-se padre, e Federico, o caçula, um menino bonzinho que não aparece com muito destaque. Outra personagem, que tem uma participação pequena, porém importante, é a mãe de Maria, uma senhora insuportável que odeia o genro e que, em suas curtas visitas à casa da filha, dá palpites agressivos sobre tudo.

Os Bandini são extremamente pobres. Os meninos conseguem estudar no colégio católico porque as freiras têm pena da situação financeira deles – às vezes uma mensalidade é paga, mas na maior partes das vezes isto não acontece. Além disso, a dívida da família na venda só faz crescer, e eles só conseguem obter víveres por lá porque o dono do estabelecimento, apesar de reclamar bastante deles, também tem piedade dos Bandini.

A ação toda de Espere a primavera, Bandini se passa durante alguns meses de inverno extremamente gelados. Nesta época, Svevo, assim como outros pedreiros da região, tem grande dificuldade de arranjar trabalho, o que torna a situação dos Bandini ainda mais dramática. Sem nada para fazer, o normalmente estressado e irascível pai da família fica com o temperamento ainda pior e passa cada vez mais tempo fora de casa, bebendo com os amigos, até que um dia simplesmente não volta mais para casa. Com isto, Maria, que mesmo em todas as dificuldades sempre conseguia manter a postura de uma boa e amorosa mãe de família, começa a perder o controle sobre suas ações.

No meio deste vendaval todo, Arturo tenta levar uma vida normal. Católico, ele tem grande medo de pecar, muito embora não entenda muitos detalhes do Catecismo. Ele se apaixona perdidamente por Rosa Pinelli, uma garota que mal dá bola para ele. Apesar do seu pai ser tão irascível, Arturo costuma defendê-lo quando das brigas dele com a mãe. O garoto é, ao mesmo tempo, impulsivo e amoroso, numa espécie de mistura das personalidades de Svevo e Maria.

Pungente e melancólico, Espere a primavera, Bandini tem uma excelente caracterização dos personagens – notadamente de Arturo e de seus pais -, é contado com extrema sensibilidade e tem um final extremamente bem realizado. Um livro excepcional.

Pergunte ao pó (208 páginas) é o segundo romance publicado de Fante, e foi lançado originalmente em 1939. Ele mostra um Arturo Bandini mais velho, tentando a sorte, sozinho, como escritor em Los Angeles: quando o livro começa ele já tinha conseguido publicar um conto numa revista de circulação nacional, e os dólares obtidos nesta publicação já tinham acabado. Bandini, então, obtém um pouco mais de dinheiro junto à sua mãe – que continuava pobre, diga-se de passagem. Neste período de grandes dificuldades ele conhece Camilla Lopez, uma garçonete de origem hispânica. O relacionamento entre os dois é repleto de mal-entendidos: passam a maior parte do tempo se agredindo verbalmente e, mesmo quando tentam se acertar, as dificuldades permanecem. Os problemas entre eles só aumentam pelo fato de ela ser um tanto desequilibrada, e amar desesperadamente Sammy, um rapaz doente que vai embora de Los Angeles para padecer no deserto (onde ela o vai visitar freqüentemente) – e que não tem o menor interesse nela.

Apesar de o conturbado relacionamento entre Arturo e Camilla ser o cerne de Pergunte ao pó, o livro ainda conta com outro personagem importante, a patética Vera Rivken, que serve de inspiração para o primeiro romance dele – que é vendido para a editora que publicara seu primeiro conto, trazendo um bom dinheiro para o jovem escritor.

John Fante conseguiu, em Pergunte ao pó, fazer um livro bastante coerente com o anterior Espere a primavera, Bandini. O Arturo Bandini mais velho tem o mesmo jeito “agridoce” do jovem: impulsivo, chegando a ser grosseiro às vezes, mas capaz de atos de inegável bondade. Claro, como ele está mais velho, sua ingenuidade diminuiu (embora não tenha desaparecido) e sua visão do mundo modificou-se. De todo o modo, o mais importante é que o tom de Pergunte ao pó é tão poético e pungente quanto o de Espere a primavera, Bandini: os dois livros têm a mesma inegável qualidade literária.

O caminho de Los Angeles (208 páginas) foi escrito antes dos outros dois: começou a ser composto em 1933 e apenas três anos depois foi finalizado. De todo o modo, John Fante acabou não o lançando o enquanto viveu: foi somente após a sua morte, em 1983, que a esposa do escritor descobriu o livro no meio de seus manuscritos, possibilitando a publicação póstuma.

Aqui, Bandini está na adolescência (mais velho, portanto, que em Espere a primavera, Bandini, e mais novo que em Pergunte ao pó). Ele tem que ajudar no sustento da família através de empregos insalubres e mal remunerados no porto de Los Angeles. Em O caminho de Los Angeles, Bandini tem grandes pretensões literárias, lendo Nietzsche e Schopenhauer – mesmo sem entender quase nada. Ele tem raiva de tradições burguesas como família e religião, e se considera um ser superior a toda a ralé que o cerca – e não pensa duas vezes antes de deixar isto bem claro a todos. Ele odeia os subempregos que arranjam para ele, tem delírios de grandeza e acessos de profunda depressão. Além disso, tem atitudes estranhíssimas e desequilibradas, como matar centenas de caranguejos se imaginando um imperador justiceiro, e manter uma relação de amor doentia com fotos de belas mulheres na frente das quais se masturba.

É um romance que é lido com um misto de piedade – pela triste história vivida do personagem principal – e de humor – pelas várias situações ridículas em que ele se mete. De todo modo, tanto num caso como no outro, fica-se com uma sensação de desassossego: afinal de contas, por mais que se entenda o drama do personagem principal, é muito difícil simpatizar com alguém tão louco e arrogante.

No fim das contas, não é difícil entender por que John Fante não quis publicá-lo: além de várias incoerências no enredo em relação aos outros dois livros (como a não existência dos irmãos e a existência de uma irmã que só aparece neste livro, chamada Mona), o agressivo Arturo Bandini deste romance é totalmente diferente do agridoce personagem de Espere a primavera, Bandini e Pergunte ao pó. E por último, mas não menos importante, O caminho de Los Angeles literariamente é bastante inferior aos livros já citados: sua leitura se justifica apenas como curiosidade.

(Revista Dominical do Jornal O Estado do Paraná, Curitiba (PR), p. 18 – 19, 02 jul. 2006.)

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