Conversa com a voz interior
Impressões

Conversa com a voz interior

17 de fevereiro de 2016 0

– Você quer que eu te guie?

– Não.

– Está aí, com essa folha em branco na frente, querendo escrever, e não quer minha ajuda?

– É.

– Por quê?

– Sei lá. Comi demais. Estou indisposto e com dor de cabeça.

– Tá.

– Não vai me ajudar?

– Você acabou de dizer que não quer minha ajuda.

– Mudei de idéia.

– Você está vendo o livro aí do teu lado e quer ler. Não quer pensar na coluna da próxima semana, quer dar um descanso para a sua cabeça. E o pior é que você nem está gostando tanto dele. Só lê porque achou a capa bonita.

– É tudo verdade.

– Mesmo assim recusou minha ajuda.

– Porra, já falei que mudei de idéia!

– Mas não pediu desculpas.

– Tá, desculpa então.

– Buuuuuuuuuuuuuu.

– Bobo. Você não quer me ajudar?

– Mudei de idéia.

– Saco.

– Eu quero te ajudar, mas VOCÊ SIMPLESMENTE NÃO VAI TER CORAGEM DE PUBLICAR O QUE EU QUERO QUE VOCÊ ESCREVA.

– Verdade.

– Viu?

– É, desisto.

– Não desista, vou maneirar na dose.

– Mas não há como maneirar na dose sem mentir.

– Sou testemunha. Mas vamos dar um jeito nisto.

– Como?

– Você escreve, eu dito.

– Tá.

– Vá pôr fogo na lareira, você está preocupado com ele.

– Tá. (pausa) Já pus.

– Pronto. Escreva: “Aqueles anos foram foda“.

– Ok.

– Agora escreva: “Mas não tenho coragem de escrever sobre isto. Não que me falte coragem de encarar o passado, nada disso. Mas não quero que os outros saibam. O fato das coisas terem dado errado há muito tempo  não significa mais nada. Um pequeno aperto no coração, mas dorzinha quando vejo um penteado daquela época, uma queixa no supermercado por só tocarem músicas daquela época maldita, quando nada dava certo e tudo o que eu tinha eram fracassos. Mas não passa disso.” Gostou?

– Gostei. Consegui escrever.

– E agora?

– Eu é que pergunto.

– Você não vai me perguntar se pode escrever sobre aquele assunto?

– Eu sei que você não quer.

– Fato.

– Vamos pra onde agora?

– Retome o manuscrito. Onde está escrito: “Eu vou e volto para onde quero”.

– Mas esse é você.

– Verdade. Então eu falo: “vou e volto para onde quero, e ninguém me vê. Eu falo essas coisas e ninguém desconfia“.

– Mas todo o mundo te acha meio louco.

– Grande coisa. Quer saber o que andam falando de você?

– Quero.

– Você não quer.

– É. Não quero mesmo.

– Voltando: você não vai falar sobre aquele assunto. Ninguém ia acreditar. Seu texto ia ficar estranho.

– Este texto já está estranho.

– Hahahahahahahahaha. Quero ver o que vão dizer.

– Ah, deixa pra lá.

– Fato.

– Já decidi o título.

– Eu sei.

– O que você achou dele?

– Gostei. Quem sabe faça algum sentido.

(texto escrito em 2003)

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