Tradução: “Os Dois Amigos de Bourbonne”, por Denis Diderot
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Tradução: “Os Dois Amigos de Bourbonne”, por Denis Diderot

13 de janeiro de 2016 0

Havia aqui dois homens, que poderiam ser chamados Orestes e Pílades (1) de Bourbonne. Um se chamava Olivier, e outro Félix; nasceram no mesmo dia, na mesma casa, e de duas irmãs. Tinham sido nutridos com o mesmo leite; isto porque, tendo uma das mães sido morta no parto, a outra se encarregou das duas crianças. Eles foram educados juntos; eram sempre separados dos outros; amavam-se como se existe, como se vive, sem que houvesse dúvidas a respeito; eles o sentiam a todo momento, e quem sabe não o tenham dito jamais. Olivier tinha salvo uma vez a vida de Félix, que se vangloriava de ser um grande nadador e que acabou se afogando: nem um nem o outro se lembravam disso. Cem vezes Félix tirou Olivier de suas aventuras vergonhosas, onde seu caráter impetuoso o tinha levado, e este jamais pensou em agradecer àquele: eles voltavam juntos para casa, sem se falar, ou falando de outra coisa.

Quando começou a convocação para a milícia, e o primeiro bilhete fatal caiu sobre Félix, Olivier disse: “o outro é para mim“. Eles completaram seu tempo de serviço militar; voltaram à terra natal: se mais caros um ao outro do que anteriormente, é algo que eu não poderia lhes assegurar: isto porque, querido irmão, se por um lado os benefícios recíprocos cimentam as amizades racionais, por outro talvez não contribuam em nada àquelas que eu chamaria de bom grado de amizades animais e domésticas. No exército, durante um encontro, Olivier estando ameaçado de ter a cabeça rachada por um golpe de sabre, Félix colocou-se maquinalmente diante do golpe e teve o rosto cortado: dizem que ele tinha orgulho desta cicactriz; quanto a mim, não acredito nisso. Em Hastembeck Olivier tinha tirado Félix do meio da multidão de mortos, onde este tinha ficado. Quando eles eram interrogados, às vezes falavam do socorro que tinham recebido, mas jamais dos que tinham recebido um do outro. Olivier falava de Félix, Félix falava de Olivier; mas eles louvavam a si mesmos. Ao fim de algum tempo em sua terra, eles amaram; e o acaso fez com que fosse a mesma moça. Não houve entre eles nenhuma rivalidade; o primeiro que percebeu a paixão do amigo se retirou: foi Félix. Olivier casou; e Félix, desgostoso da vida sem saber por que, se precipitou em toda a sorte de negócios perigosos; o último deles foi o de se tornar contrabandista.

Você não ignora, querido irmão, que existem alguns tribunais na França, Caen, Reims, Valence e Touolouse, onde os contrabandistas são julgados; e que o mais severo dos quatro é aquele de Reims, presidido por um chamado Couleau, a alma mais feroz que a natureza jamais formou. Félix foi preso, as armas na mão, conduzido diante do terrível Couleau, e condenado à morte, como quinhentos outros que o precederam. Olivier soube da sorte de Félix. Uma noite, ele se levanta, do lado de sua mulher e, sem lhe dizer nada, vai até Reims. Ele se dirige ao juiz Couleau: se joga a seus pés, e lhe solicita a graça de ver e abraçar Félix. Couleau olha para ele, se cala um momento, e lhe faz um sinal para que se sentasse. Olivier se senta. Ao fim de meia hora, Couleau tira seu relógio, e diz a Olivier: “Se você quer ver e abraçar seu amigo vivo, corra, ele está a caminho; e se meu relógio está funcionando bem, antes de dez minutos ele será enforcado”. Olivier, transportado de fúria, dá um soco violentíssimo na nuca do juiz Couleau, após o qual este se estira quase morto; corre até a praça, chega, agride o carrasco, agride os empregados da justiça, subleva a população, indignada com estas execuções. As pedras voam; Félix, libertado, foge: Olivier se preocupa com sua saúde: mas um soldado da polícia (2) lhe perfura o flanco sem que ele se perceba. Ele chegou na porta da cidade, mas não pôde ir mais longe; charreteiros caridosos lhe deitaram numa charrete, e o colocaram na porta de sua casa um instante antes que expirasse: ele não teve senão o tempo de dizer à sua mulher: “Mulher, se aproxime, que eu te abraço. Eu morro, mas o cicatrizado se salvou”.

Uma noite, em que estávamos indo dar um passeio, conforme nosso costume, vimos diante de um casebre uma mulher alta de pé, com os quatro filhos pequenos a seus pés; sua postura triste e firme nos chamou a atenção, e nossa atenção chamou a sua. Após um momento de silêncio ela nos disse: “Eis aí quatro crianças pequenas; eu sou a mãe deles, e não tenho mais marido.” Esta maneira altiva de solicitar a comseração era bem apropriada para nos tocar. Nós lhe oferecemos nosso auxílio, que ela aceitou com honestidade: foi  nesta ocasião que nós soubemos a história de seu marido Olivier e de seu amigo Félix. Nós falamos dela, e eu espero que nossa recomendação não lhe terá sido inútil. Você sabe, querido irmão, que a grandeza de alma e as altas qualidades são de todos os tipos  e de todos os países; que tal sujeito morre obscuramente, não lhe faltando senão um outro teatro; e que não é necessário ir até os Iroqueses (3) para encontrar dois amigos.

No tempo em que o salteador Testalunga infestava a Sicília com sua tropa, Romano, seu amigo e confidente, foi pego. Ele era o lugar-tenente de Testalunga, e o segundo no bando. O pai deste Romano foi detido e preso por outros crimes. Foi-lhe prometido perdão e liberdade, desde que Romano traísse e denunciasse seu chefe Testalunga. O combate entre o amor filial e a amizade jurada foi violento; mas Romano pai persuadiu o filho a dar a preferência à amizade, pois sentir-se-ia desonrado em dever a vida a uma traição. Romano se rendeu à opinião de seu pai. Romano pai foi executado; e jamais as torturas mais cruéis puderam arrancar de Romano filho a delação de seus cúmplices.

Você desejou, querido irmão, saber o que veio a ser de Félix: é uma curiosidade tão simples, e o motivo dela é tão louvável que nós nos repreendemos um pouco por não a termos tido. Para reparar esta falta, nós pensamos inicialmente no Sr. Papin, doutor em teologia, e pároco de Sainte-Marie à Bourbonne: mas mamãe mudou de idéia; e nós demos a preferência ao subdelegado Aubert, que é um bom homem, bem roliço, e que nos enviou a seguinte narrativa, sobre a veracidade da qual você pode contar.

“O nomeado Félix ainda vive. Fugitivo das mãos da justiça, ele se lançou nas florestas da província, cujos meandros aprendeu a conhecer quando fazia contrabando, procurando se aproximar pouco a pouco da morada de Olivier, cuja sorte ignorava.

“Havia no fundo de um bosque, onde a senhora passeou algumas vezes, um carvoeiro cujo casebre servia de asilo a este tipo de gente; era também o entreposto de suas mercadoria: foi lá que Félix apareceu, não sem ter corrido o perigo cair nas emboscadas da polícia, que lhe seguia os passos. Alguns de seus associados tinham levado para lá a notícia de sua prisão em Reims; e o carvoeiro e a carvoeira lhe haviam dado como justiçado, quando ele lhes apareceu.

“Eu vou lhe contar a coisa conforme soube pela carvoeira, que faleceu aqui há não muito tempo.

“Foram os seus filhos, que andavam em torno do casebre, que o viram inicialmente. Enquanto ele se detinha a acariciar o mais jovem, do qual era padrinho, os outros entraram no casebre gritando: ‘Félix! Félix!’ O pai e a mãe saíram repetindo o mesmo grito de alegria; mas este miserável estava tão arrasado de fadiga e de indigência que não teve força de responder, e tombou quase desfalecido nos braços deles.

“Estas boas pessoas lhe socorreram com o que tinham, lhe deram pão, vinho e alguns legumes: ele comeu e dormiu.

“No seu despertar suas primeiras palavras foram: ‘Olivier! Crianças, vocês não sabem nada de Olivier?’ ‘Não’, elas responderam. Ele lhes contou a aventura de Reims; e passou a noite e o dia seguintes com eles. Ele suspirava, pronunciava o nome de Olivier; ele lhe supunha nas prisões de Reims; queria ir até lá,  queria ir morrer com o amigo; e não foi sem dificuldades que o carvoeiro e a carvoeira lhe fizeram desistir deste desígnio.

“No meio da segunda noite, ele tomou um fuzil, colocou um sabre sob seus braços; e, se endereçando com voz baixa ao carvoeiro: ‘Carvoeiro!’ ‘Félix!’ ‘Pegue sua machadinha, e vamos.’ ‘Aonde?’ ‘Grande pergunta! Até Olivier.’ Eles foram; mas, saindo da floresta, ei-los cercados por um destacamento da polícia.

“Eu me baseio no que me disse a carvoeira; mas é estranho que dois homens a pé pudessem lutar contra uma vintena de homens a cavalo: aparentemente estes estavam esparsos, e queriam pegar suas vítimas com vida. O que quer que seja,  a ação foi muito intensa; houve cinco cavalos estropiados e sete cavaleiros esfaqueados ou apunhalados. O pobre carvoeiro quedou morto no local, devido a um tiro na têmpora; Félix ganhou novamente a floresta; e como ele é de uma agilidade incrível, corria de um local a outro; correndo, carregava seu fuzil, atirava, assobiava. Esses assobios, esses tiros de fuzil, dados a diferentes intervalos e em diferentes lados, fizeram os cavaleiros da polícia temerem que houvesse lá uma horda de contrabandistas: então eles se retiraram apressadamente.

“Quando Félix os viu distanciados, voltou ao campo de batalha; colocou o cadáver do carvoeiro sobre suas costas e retomou o caminho do casebre, onde a carvoeira e seus filhos ainda dormiam. Ele pára na porta, estende o cadáver a seus pés, e se senta, as costas apoiadas contra uma árvore e o rosto dirigido para a entrada do casebre. Eis o espetáculo que aguardava a carvoeira, assim que ela saísse de sua palhoça.

“Ela se levanta, ela não encontra mais o seu marido a seu lado; olha por Félix, e nada de Félix. Ela se levanta, ela sai, ela vê, ela grita, ela cai de costas. Seus filhos a acorrem, eles olham, eles gritam, eles se rolam sobre o seu pai, eles se rolam sobre sua mãe. A carvoeira, voltando a si devido ao tumulto e os gritos de seus filhos, arranca seus cabelos, rasga as faces. Félix, imóvel ao pé de sua árvore, a cabeça virada para trás, lhes dizia com uma voz enfraquecida: ‘Mate-me.’ Fez-se um momento de silêncio; após o que a dor e os gritos eram retomados, e Félix lhes falava de novo: ‘Matem-me; crianças, por piedade, matem-me’.

“Eles passaram assim três dias e três noites se desolando; na quarta, Félix diz à carvoeira: ‘Mulher, pegue seu alforge, coloque pão nele e me siga’. Após um longo circuito através de nossas montanhas e de nossas florestas, eles chegaram na casa de Olivier, que é situada, como o senhor sabe, na extremidade da cidade, no local onde a estrada se divide em duas, uma indo para Franche-Comté, e a outra para Lorraine.

“É lá que Félix vai saber da morte de Olivier, e se encontrar entre as viúvas de dois homens massacrados por sua causa. Ele entra, e diz bruscamente à sra. Olivier: ‘Onde está Olivier?’ Devido ao silêncio desta mulher, às suas vestes, às suas lágrimas, ele compreendeu que Olivier não vivia mais. Ele se sentiu mal; caiu, e abriu a cabeça contra o rolo de amassar pão. As duas viúvas o levantaram; o seu sangue corria sobre elas; e enquanto elas se ocupavam a lhe estancar o sangue  com os seus aventais, ele lhes dizia: ‘e as senhoras são as mulheres deles, e me socorrem!’ Após o que ele desfaleceu, depois voltou a si, e dizia suspirando: ‘Por que ele não me deixou? Por que ir até Reims? por que deixá-lo vir?…’ Então ele perdeu a cabeça, se enfureceu, se rolou no chão e rasgou suas vestes. Em um desses acessos tirou seu sabre e ia se atingir; mas as duas mulheres se jogaram sobre ele, pediram socorro; os vizinhos acorreram: ele foi amarrado com cordas e sangrado sete a oito vezes. Seu furor desapareceu com o esgotamento de suas forças; e ele ficou como morto durante três ou quatro dias, ao fim dos quais sua razão retornou. No primeiro momento ele vira os olhos em torno de si, como um homem que sai de um sono profundo, e diz: ‘Onde estou? Quem são as senhoras?’ A carvoeira lhe responde: ‘ Eu sou a carvoeira…’ Ele retoma: ‘Ah! sim, a carvoeira… E a senhora?…’ A mulher de Olivier se cala. Então ele começa a chorar, se vira para a parede, e diz soluçando: ‘Eu estou na casa de Olivier… e esta é a cama de Olivier… E esta mulher que está aí, era a sua, ah!…’

“As duas mulheres tiveram tanto cuidado com ele, lhe inspiraram tanta piedade, lhe suplicaram tão instantaneamente para que vivesse, lhe mostraram de uma maneira tão pungente que ele era a única fonte de recurso possível para a sobrevivência delas, que ele deixou-se persuadir.

“Durantre o tempo em que ele ficou nessa casa não se deitou mais. Ele saía durante a noite, errava nos campos, se rolava na terra, chamava Olivier; uma das mulheres o seguia, e lhe trazia de volta no amanhecer.

“Muitas pessoas sabiam que ele estava na casa de Olivier, e entre estas havia aquelas mal-intencionadas. As duas viúvas lhe advertiram do perigo que ele corria: era uma tarde; ele estava sentado sobre um banco, o sabre sobre os joelhos, os cotovelos apoiados sobre uma mesa, os dois pulsos sobre os dois olhos. Inicialmente ele não respondeu nada. A mulher de Olivier tinha um rapaz de dezoito anos, a carvoeira uma menina de quinze. De repente ele diz à carvoeira: ‘Carvoeira, vá procurar sua filha, e a traga aqui…’ Ele tinha algumas foices, e as vendeu. A carvoeira volta com sua filha, o filho de Olivier casou com ela: Félix deu-lhes o dinheiro de suas foices, beijou-lhes, pediu-lhes perdão chorando: e eles foram se fixar no casebre onde estão até hoje, e onde eles servem de pai e mãe às outras crianças. As duas viúvas foram morar junto com eles e os filhos de Olivier tiveram um pai e duas mães.

“Há mais ou menos um e meio a carvoeira faleceu; a mulher de Olivier a chora todos os dias.

“Uma noite em que elas espiavavam Félix (porque uma das duas sempre o tinha em vista), o viram desfazendo-se em lágrimas; ele virava em silêncio seus braços em direção à porta que o separava delas, e se punha em seguida a fazer suas malas. Elas não lhe disseram nada, porque elas compreendiam, de todo o modo, como a sua partida era necessária. Eles jantaram, todos os três, sem pronunciar uma palavra. De madrugada, ele se levantou; as mulheres não pregavam o olho; ele avançou em direção à porta na ponta dos pés. Lá parou, olhou em direção à cama das duas mulheres, enxugou os olhos com as mãos e saiu. As duas mulheres se apertaram nos braços uma da outra, e passaram o resto da noite chorando. O local de refúgio dele era ignorado; mas não houve praticamente nenhuma semana em que ele não lhes enviou algum auxílio.

“A floresta onde a filha da carvoeira vive com o filho de Olivier pertence a um certo Sr. Leclerc de Rançonnières, homem muito rico, e senhor de outra aldeia destes distritos, chamado Courcelles. Um dia que o Sr. de Rançonnières ou de Courcelles, como a Senhora preferir, caçava na sua floresta, chegou no casebre do filho de Olivier; entrou, se pôs a brincar com as crianças, que eram bonitas; ele lhes fez perguntas; o jeito da mulher, que não era ruim, lhe reveio; o tom seguro do marido, que lembrava bastante seu pai, o interessou; ele soube da aventura de seus pais, ele prometeu solicitar o perdão de Félix; ele o solicitou, e o obteve.

“Félix passou ao serviço do Sr. de Rançonnières, que lhe deu um emprego de auxiliar de caçadas.

“Havia já em torno de dois anos que ele vivia no castelo de Rançonnières, enviando às viúvas uma boa parte de seus ganhos, quando o apego a seu patrão e a altivez de seu caráter o envolveram numa disputa que não era nada em sua origem mas que teve as conseqüências mais deploráveis.

“O Sr. de Rançonnières tinha por vizinho em Courcelles um certo Sr. Fourmont, conselheiro no tribunal (4) de Ch…… As duas casas eram separadas apenas por uma cerca de pedras; esta cerca atrapalhava do Sr. de Rançonnières, e tornava a entrada difícil às carruagens. O Sr. de Rançonnières a fez recuar alguns pés na direção do Sr. Fourmont; este recolocou a cerca do mesmo tanto sobre a propriedade do Sr. de Rançonnières; e então seguiram-se ódio, insultos, um processo entre os dois vizinhos. O processo da cerca suscitou dois ou três outros mais consideráveis. As coisas estavam neste ponto quando, uma noite, o Sr. de Rançonnières, voltando da caça acompanhado de seu guarda-costas Félix, encontrou, na estrada principal, o Sr. Fourmont, o magistrado, e seu irmão, o militar. Este diz a irmão: ‘Meu irmão, o que você acharia se nós cortássemos o rosto deste bugre?’ Esta pergunta não foi entendida pelo Sr. de Rançonnières mas infelizmente o foi por Félix, que, se dirigindo altivamente ao jovem, lhe diz: ‘Prezado oficial, o senhor seria suficientemente corajoso para o dever de fazer o que disse?’ No mesmo instante ele coloca seu fuzil no chão, e coloca a mão sobre a guarda de seu sabre, porque ele não andava jamais sem seu sabre. O jovem militar desembainha sua espada, e avança sobre Félix; o Sr. de Rançonnières acorre,  se interpõe, apanha seu sabre. Enquanto isso o militar toma o fuzil que estava no chão, atira em Félix, e erra; este replica com um golpe de sabre, faz cair a espada da mão do jovem, e com a espada, a metade do braço; e eis um processo criminal seguido de três ou quatro processos civis. Félix confinado na prisão; um processo medonho; e, em seguida a este processo, um magistrado despojado de seu posto e quase desonrado, um militar excluído de sua corporação, o Sr. de Rançonnières morto de desgosto, e Félix, cuja detenção durou todo este o tempo, exposto ao ressentimento dos Fourmont. Seu fim teria sido desastroso se o amor não o tivesse socorrido; a filha do carcereiro apaixonou-se por ele e facilitou sua evasão; se isto não é verdade, pelo menos é o que diz a opinião pública. Ele foi até a Prússia, onde serve atualmente no regimento de segurança pública (5). Diz-se que ele é amado por seus camaradas, e até mesmo conhecido do rei. Seu nome de guerra é O Triste; a viúva Olivier me disse que ele continua a socorrê-la.

“Eis, senhora, tudo o que eu pude descobrir da história de Félix. Eu junto à minha narrativa uma carta do Sr. Papin, nosso vigário. Eu não sei o que ela contém; mas eu creio que o pobre padre, que tem a mentalidade um pouco estreita e o coração bem transtornado, só lhe fala de Olivier e de Félix segundo suas prevenções. Eu lhe suplico, senhora, de que se atenha aos fatos, sobre a verdade dos quais a senhora pode contar, e à bondade do seu coração, que a aconselhará melhor que o primeiro teólogo de Sorbonne, que não é o Sr. Papin.”

CARTA

DO SR. PAPIN, DOUTOR EM TEOLOGIA, E VIGÁRIO DE SAINTE-MARIE À BOURBONNE

“Eu ignoro, senhora, o que o Sr. Subdelegado pôde lhe contar sobre Olivier e Félix, nem qual interesse a senhora pode ter em dois bandidos, que tiveram todos os passos nesse mundo manchados de sangue. A Providência, que castigou um, esperou alguns momentos pelo outro, os quais eu temo que ele não tenha aproveitado; mas que a Vontade de Deus seja feita! Eu sei que existem pessoas aqui (e eu não me espantaria nada que o Sr. Subdelegado estivesse entre eles) que falam desses dois homens como se fossem modelos de uma amizade rara: mas o que é aos olhos de Deus a mais sublime virtude, privada dos sentimentos da piedade, do respeito devido à Igreja e a seus ministros, e da submissão da lei do soberano? Olivier morreu na porta de sua casa, sem sacramentos; quando fui chamado para ir junto de Félix na casa das viúvas, eu jamais pude tirar de lá outra coisa que não fosse o nome de Olivier; nenhum sinal de religião, nenhuma marca de arrependimento. Eu não tenho lembrança que este tenha se apresentado, uma vez que fosse, ao tribunal da penitência. A Sra. Olivier é arrogante, e me faltou em mais de uma ocasião; sob pretexto de que sabe ler e escrever, ela se crê em estado de educar seus filhos; e eles não são vistos nem nas escolas da paróquia, nem nas minhas instruções. Que a madame julgue, segundo estas informações, se pessoas desta espécie são bem dignas de sua bondade! O Evangelho não cansa de nos recomendar a comiseração pelos pobres; mas se dobra o mérito da caridade quando existe uma boa escolha dos miseráveis; e ninguém conhece melhor os verdadeiros indigentes que o pastor comum dos indigentes e dos ricos. Se Madame me dignasse com a honra de sua confiança, eu empregaria talvez as marcas de sua beneficência de uma maneira mais útil para os infelizes e mais meritória para ela.

“Seu, com todo o respeito, etc.”

A Sra. de *** agradeceu o Sr. Subdelegado Aubert por suas atenção, e enviou suas esmolas ao Sr. Papin, com a carta que se segue:

“Eu estou muito agradecida, senhor, pelos seus sábios conselhos. Eu lhe confesso que a história destes dois homens tinha-me tocado; e o senhor há de convir que o exemplo de uma amizade assim tão rara estava bem feita para seduzir uma alma honesta e sensível; mas o senhor me esclareceu, e eu percebi que era melhor levar nosso socorro a virtudes cristãs e desafortunadas que a virtudes naturais e pagãs. Eu rogo ao senhor que aceite a módica soma que lhe estou enviando, e que a distribua segundo uma caridade mais esclarecida que a minha.

“Eu tenho a honra de ser… , etc.”

Imagina-se que a viúva Olivier e Félix não tiveram nenhuma parte nas esmolas da Sra. de ***. Félix faleceu e a pobre mulher teria perecido na miséria se não tivesse se refugiado na floresta com seu filho primogênito, onde ela trabalha, apesar da grande idade, e subsiste como pode ao lado de seus filhos e netos.

E então, há três tipos de contos… Existem bem mais, você me diria… Em boa hora; mas eu distingo o conto à maneira de Homero, de Virgílio, do Tasso, e eu o chamo de conto maravilhoso. Nele a natureza está exagerada; a verdade é hipotética: e se o contista preservou bem o modelo que escolheu, se o todo responde a este modelo, tanto nas ações quanto nos discursos, ele obteve o gênero de perfeição que a sua obra comportava, e você não tem mais nada a pedir. Entrando no seu poema, você põe o pé numa terra desconhecida, onde nada se passa como naquela que você mora, mas onde tudo se faz em grande escala como as coisas se fazem pequenas no seu entorno. Há o conto agradável à maneira de La Fontaine, de Vergier, de Ariosto, de Hamilton, onde o contista não se propõe nem a imitação da natureza, nem a verdade, nem a ilusão; ele se lança nos espaços imaginários. Diga a este autor: seja alegre, engenhoso, variado, original, mesmo extravagante, que eu consinto; mas me seduza pelos detalhes; que o charme da forma me faça esquecer sempre da inverossimilhança do fundo: e se o contista faz o que você exige aqui, ele fez tudo. Há enfim o conto histórico, tal como é escrito nas novelas de Scarron, de Cervantes, de Marmontel…

– Ao diabo o conto e o contista históricos! é um mentiroso superficial e frio…

– Sim, se ele não sabe fazer seu trabalho. Este se propõe a enganá-lo; ele está sentando no canto da sua lareira; ele tem por objeto a verdade rigorosa; ele quer que acreditem nele; ele quer interessar, tocar, puxar, emocionar, fazer arrepiar a pele e correr as lágrimas; efeito que ele não consegue sem eloqüência e sem poesia; um e outro exageram, superfaturam, amplificam, inspiram a desconfiança: como fará este contista para enganá-lo? Vejamos. Ele respingará sua história com pequenas circustâncias tão ligadas à coisa, com traços tão simples, tão naturais e entretanto tão difíceis de imaginar que você será forçado a dizer a si mesmo: realmente, isto é verdade: estas coisas não se inventam. É assim que se salvará o exagero da eloqüência e da poesia; que a verdade da natureza cobrirá o prestígio da arte; e que ele satisfará às duas condições que parecem contraditórias, de ser ao mesmo tempo historiador e poeta, verídico e mentiroso.

Um exemplo emprestado de uma outra arte tornará talvez claro o que eu quero dizer-lhe. Um pintor executa sobre uma tela uma cabeça. Nela todas as as formas são fortes, grandes, regulares, é o conjunto mais perfeito e mais raro. Eu experimento, quando a vejo, respeito, admiração, pavor. Eu procuro nela o modelo na natureza, e não o encontro; em comparação, tudo é fraco, pequeno e mesquinho; é uma cabeça ideal; eu o sinto, eu digo a mim mesmo. Mas se o artista me fizer perceber na frente desta cabeça uma pequena cicatriz, uma verruga em uma de suas têmporas, um corte imperceptível no lábio inferior; e, de ideal que ela era, num instante a cabeça se torna um retrato; uma marca de varíola no canto do olho ou ao lado do nariz, e este rosto de mulher não é mais de Vênus; é um retrato de alguma de minhas vizinhas. Eu direi então a nossos contistas históricos: suas figuras são belas, se lhes agrada; mas falta nelas a verruga na têmpora, o corte no lábio, a marca de varíola ao lado do nariz, que lhes tornaria verdadeiras; e como dizia meu amigo Caillot: “um pouco de poeira sobre meus sapatos, e eu não saio do meu camarote, eu volto ao campo.”

Atque ita mentitur, sic veris falsa remiscet,

Primo ne medium, me ne discrepet imum.

Horat. De Art. Poet., V, 159.

E então um pouco de moral depois de um pouco de poesia, isto vai tão bem! Félix era um indigente que não tinha nada; isto também pode ser dito do carvoeiro, da carvoeira e dos outros personagens deste conto; e conclua que em geral não se pode haver amizades inteiras e sólidas senão entre homens que não têm nada. Um homem então é toda a fortuna de seu amigo, e seu amigo é toda a sua. Daí a verdade da experiência, que faz com que a infelicidade estreite os laços; e a matéria de um pequeno parágrafo a mais para a primeira edição do livro d’O Espírito.

(texto traduzido em 2003, dedicado a Marcos Fernandes)


 

(1) personagens da peça Electra, de Sófocles.

(2) polícia de maréchaussé no original (maréchaussée é uma palavra que poderia ser traduzida como “marechalato”). Esta polícia de maréchaussé foi extinta em 1790 e substituída pela que existe até hoje. No restante do texto, sempre que for utilizado o termopolícia, será subentendido que é da polícia de maréchaussé que se trata.

(3) tribo indígena norte-americana.

(4) présidial no original: este présidial, extinto em 1791, é o correspondente ao atual tribunal de primeira instância.

(5) regimento des Gardes no original. Estes regimentos, utilizados na segurança pública, chegaram a participar de guerras.

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