Dalton Trevisan – duas resenhas
Literatura

Dalton Trevisan – duas resenhas

15 de junho de 2015 2

O anão e a ninfeta

– Me fiz de bêbado entre os bêbados, para ganhar os bêbados.

Me fiz de tudo para todos, para por todos os meios chegar a entender um só – ai de mim!

As duas linhas acima são a íntegra do conto “O Escritor”, do novo livro de Dalton Trevisan, O anão e a ninfeta (Editora Record, 159 páginas). A alusão bíblica é clara: Porque, sendo livre de todos, fiz-me escravo de todos, a fim de ganhar o maior número possível (I Coríntios, 9, 29). Mas enquanto o apóstolo Paulo queria converter os homens, Dalton Trevisan quer entendê-los. E a humanidade que o maior escritor paranaense enxerga é cheia de vícios, torpezas e defeitos.

No conto que dá o título ao livro, um anão gasta todo o seu dinheiro com prostitutas, que não só o satisfazem sexualmente, como frequentemente roubam suas roupas e o que ele tem na carteira. Em mais de uma história do livro, um velho senhor compra livros numa livraria apenas para chamar a atenção da balconista – que lhe dá atenção, mas não o que ele quer. Em “O jogo sujo do amor”, um homem bem sucedido tenta se equilibrar ente o amor da esposa e da amante, que vivem em cidades diferentes. No conto mais impressionante de todos, “O caniço barbudo”, um esquisito e avarento herdeiro vive só, acompanhado apenas pela empregada e por seus jornais – dos quais não se desfaz de jeito nenhum. “O velho poeta” conta, em primeira pessoa, o encontro do narrador (o próprio Dalton?) com um pretensioso e patético poeta. Em “O rosto perdido”, um homem abandonado pela mulher tenta se consolar com a companhia do cachorro. Até Inri Cristo e Maria Bueno aparecem. Ele, no pungente “O reencarnado”. Ela, num poema que tenta contar a história da santa popular de Curitiba.

E, claro, não poderia faltar os personagens habituais de Dalton Trevisan: prostitutas, bêbados, viciados, assassinos, miseráveis. Estes normalmente aparecem nas histórias curtas de “O anão e a ninfeta”, como a chocante “Programa”, em que o curto diálogo mostra todo um universo decadente:

– Vamos, bem?

– Quanto?

– Dez.

– Onde?

– Logo ali.

– Tá.

– Chegamos.

– Se alguém vê?

– Não tem perigo.

– Dez. Tome.

– Com dente?

– Hein?!

– Veja. Sem dente.

– Não. Sim.

– Qual é?

– Sim. Fique.

– Tá bem.

– Mas não morda.

Não posso afirmar se Dalton Trevisan conseguiu entender a humanidade sobre a qual se debruça, mas o carinho que ele sente por seus personagens é sentido também pelo leitor, é sim. Lemos “O anão e a ninfeta” um tanto chocados, e um tanto enternecidos.

(publicado no Mondo Bacana em 2011)

 

33 contos escolhidos e Rita Ritinha Ritona

Dalton Trevisan Desde sua estréia em Novelas Nada Exemplares, de 1959, um dos mais importantes escritores do país – o curitibano Dalton Trevisan – povoa suas histórias com o lado obscuro de sua cidade natal. A vida das prostitutas, dos boêmios, das mulheres abandonadas e dos enjeitados é o tema principal de seus contos quase sempre curtos, poucas vezes passando de dez páginas. Segundo ele, para ter liberdade de movimento entre as pessoas que servirão de matéria-prima para suas histórias, Trevisan leva sua vida completamente afastado da mídia. Não dá entrevistas, nunca vai a feiras literárias, não se deixa fotografar.

Lançada recentemente pela Editora Record, a compilação 33 Contos Escolhidos(272 páginas) é uma excelente introdução à obra deste autor importantíssimo. Dispostas em ordem cronológica e escolhidas pelo próprio Dalton, as histórias do livro mostram uma Curitiba bastante diferente daquela da propaganda oficial. A capital do Paraná, na visão do escritor, é a cidade das prostitutas do Passeio Público, dos maridos adúlteros que voltam para casa bêbados de madrugada, dos casais que se odeiam, dos jovens viciados em crack.

Sob pena de cometer alguma injustiça, fica até difícil escolher os melhores contos em uma coletânea de tão alto nível literário. De todo o modo, entre os pontos altos indiscutíveis pode-se apontar o arrependimento de Nelsinho, o famoso “Vampiro de Curitiba”[na verdade, apenas um marido adúltero e tarado] em “A Noite da Paixão”; a fantástica noite de aventuras dos boêmios em “Esta Noite Nunca Mais”; a ao mesmo tempo pungente e angustiante conversa de amigos de “O Quinto Cavalheiro do Apocalipse”; a triste história do aborto de “O Menino de Natal”; e a irônica e ácida história de uma professora feminista que se apaixona por um aluno brucutu em “Capitu Sou Eu”.

Se, por um lado, a concisão é uma característica comum de todos os 33 “contos escolhidos”, por outro, as mudanças no estilo do autor à medida em que o tempo foi passando são evidentes. Os contos iniciais – os mais antigos – são literariamente mais elaborados apresentando, com freqüência, frases poéticas de efeito dramático ou irônico [alguns exemplos: “O amor é uma corruíra no jardim – de repente ela canta e muda toda a paisagem”, em “A Faca no Coração”; “Ó prazeres no leito de tão pouca dura”, em “A Doce Inimiga”; “Direto ao banheiro, que água lavaria a imundície da alma?”, em “O Maior Tarado da Cidade”]. Já os mais recentes possuem estrutura mais simples e linguajar mais direto.

Outra característica interessante da evolução de Dalton é na temática. Em seus primeiros contos a Curitiba é praticamente uma cidade do interior, com suas polaquinhas e seus boêmios que deixam suas pobres mulheres sozinhas em casa. Já na produção mais recente aparecem personagens de uma nova cidade: moças modernas e independentes, dependentes de crack, evangélicos…

E é neste estilo, quase jornalístico e mostrando as mazelas da vida moderna, que se pode enquadrar a grande maioria das histórias de Rita Ritinha Ritona (Editora Record, 125 páginas), o novo lançamento de Dalton Trevisan.

Alguns dos contos – como “O Gringo” e principalmente “Maria, Sua Criada”, que conta a história de uma imigrante nordestina batalhadora – são inesperadamente belos e doces. Muito interessantes também são o conto que dá título ao livro, no qual uma moça independente literalmente se anula por causa do noivo conservador; o erótico “O Mestre e a Aluna”, que mostra o relacionamento sexual intenso e controverso de um professor com sua pupila; “Filho Ingrato”, onde Dalton Trevisan, com oitenta anos recém-completados, insinua que os velhos nem sempre são mais dignos de respeito que os mais novos; e “Adeus, Vampiro”, com Nelsinho, o “Vampiro de Curitiba”, se apresentando totalmente decadente – aqui o autor revive o estilo literário do início de sua carreira.

Rita Ritinha Ritona também tem dois poemas: os chocantes e melancólicos “Balada das Mocinhas do Passeio” e “Amintas 749”. Já outros contos, entretanto, são secos e frios: histórias tristes e sem esperança de estupros, viciados ou presidiários, que mais parecem reportagens policiais do que contos de um grande escritor. Também deslocado no livro é “Duas Normalistas”. Tirando a pornografia, nada sobra nele.

No todo, Rita Ritinha Ritona é um lançamento menor dentro da vasta obra de Dalton Trevisan. O que, obviamente, não quer dizer que ele seja ruim Muito pelo contrário…

(publicado no Mondo Bacana em 2005) 

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There are 2 comments

  • Adoro seus textos, para início de conversa. Inclusive os usei, com as devidas referências, é claro, no meu site ovampirodecuritiba.com.br, material das minhas pesquisas de Mestrado, Doutorado e do Estágio Pós-doutoral. Em breve , ele estará aberto para acessos. Um grande abraço!

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