Fabricio Muller

Literatura
“Verão”, de J.M.Coetzee
1 de dezembro de 2019 at 21:29 0
Foto: Vortex Cultural

J.M.Coetzee é um escritor é sul-africano de origem afrincânder, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2003. A pronúncia correta é algo parecido com côtzêe

“Verão” (Companhia das Letras, 276 páginas), um dos melhores livros que já li, é a terceira obra de sua trilogia autobiográfica e tem uma estrutura pra lá de original: nela, o escritor “John Coetzee” já está morto, e um jornalista entrevista algumas pessoas próximas a ele – quatro mulheres e um homem – para conseguir material para uma biografia do escritor. “Verão” é composto basicamente por essas entrevistas.

Os entrevistados têm opiniões nada lisonjeiras sobre Coetzee: ele é chamado por termos como “mosca morta”, “distante”, “esquisito”, com “ideias estranhas”. A tentação de me comparar com ele é meio grande, já que alguns desses qualificativos pouco agradáveis podem se aplicar perfeitamente a mim – quem me conhece, ou me conhece pouco, sabe disso. Mais do que isso, Coetzee é um escritor com formação em exatas – ele é formado em matemática, enquanto eu sou engenheiro – e, também como eu, entende de programação de computadores.

De todo modo, este jeito distante de "John Coetzee" esconde um grande observador da alma humana. Uma das personagens de “Verão”, a brasileira Adriana, ficou com um ódio profundo de Coetzee por ele ter se apaixonado por ela sem que ela quisesse nada com ele. Mesmo assim ela serve de modelo - e modelo altamente positivo ainda por cima! - de uma personagem num livro que ele escreveria mais tarde. Para Coetzee, a observação aguda e imparcial foi muito mais importante do que a raiva que a brasileira Adriana sentia por ele.

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Séries
Marseille
24 de novembro de 2019 at 18:09 1
Benoît Magimel e Gérard Dépardieu - https://laparola.com.br/marseille-netflix

A primeira série francesa da Netflix, “Marseille”, teve críticas em sua maioria desfavoráveis e por isso não será renovada para uma terceira temporada. Uma queixa comum diz respeito a uma suposta falta de originalidade -  Patrícia Kogut, de “O Globo”, por exemplo, comentou a respeito de suas semelhanças incômodas com séries como “The killing”, “The affair” e “House of Cards”. Bem, eu não assisti a nenhuma das três citadas, e será que isso me ajudou a gostar de “Marseille”? Sei lá.

As duas temporadas de série têm oito episódios de cerca de 50 minutos cada uma, e tratam principalmente dos jogos de poder entre o prefeito de Marselha, Robert Taro (Gérard Dépardieu) e seu desafeto e antigo seguidor Lucas Barrès, vivido por Benoît Magimel. No meio das disputas políticas, dramas familiares, relação com traficantes, a ascensão da extrema-direita, e muito sexo.

Gostei muito das muitas tramas que “Marseille” apresenta e a interpretação de Gérard Dépardieu é um negócio de outro mundo: vi poucas atuações deste nível - se é que já vi alguma.

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Literatura
“Violetas e Pavões”, de Dalton Trevisan
17 de novembro de 2019 at 14:28 0
Dalton Trevisan - Jornal do Povo

Em “A Desgraça de Zeno” uma mulher trafica drogas pela primeira vez e se dá muito mal. “Amor, Amor, Abra as Asas” é uma declaração sem-vergonha de amor de um homem para sua amada. “O Recibo” conta um estupro. “Na Virada da Noite” conta a vida de um homem devastado pelas drogas. “Violetas e Pavões” é, também, uma safada declaração de amor – mas do ponto de vista feminino. Em “Não Sou o Buba” o protagonista tenta explicar que foi preso por engano. Em “Misericórdia” uma senhora doente é internada na ala dos idosos, “anexa à dos psicóticos”. “Tenha Uma Boa Noite!” conta um tenso atravessar de uma região perigosa. Em “Ele” um pai estupra a própria filha. “Lábios Vermelhos de Mulher” conta as fantasias sexuais de uma mulher casada. “Elas Cantam Só Para Mim” é sobre as desventuras de um fotógrafo. Em “Uma Senhora” uma mãe é abandonada pelos três filhos.

Em “Violetas e Pavões” (Record, 128 páginas), publicado em 2009, Dalton Trevisan conta mais histórias sórdidas, violentas, eróticas, como tem feito há tantos anos já.

Sorte nossa, seus leitores!

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Esporte
Uma partida inesquecível
10 de novembro de 2019 at 18:28 0

O jogo é na Islândia, no Reykjavík Rapid de 2004. As partidas já começaram, os jogadores já estão cada um de um lado de suas mesas, mas um enxadrista ainda não chegou. Seu adversário está lá, andando de um lado para outro, com a expressão perdida. Ele toma um refrigerante, o que combina com sua própria idade: o jogador que já chegou tem apenas treze anos, mas sua aparência é de ainda menos idade: é um pré-adolescente, quase criança. Mais tarde o garoto diria que não queria ganhar o jogo pela ausência de seu adversário, já que ele queria mesmo jogar aquela partida.

O adversário finalmente chega na sala, esbaforido. Ele se senta de seu lado da mesa, cumprimenta a criança, que está jogando com as brancas e faz o primeiro lance. O adversário – um senhor de quarenta anos, com cabelos muito curtos e já grisalhos – põe as mãos na cabeça, parece preocupado, pensa um pouco e logo faz seu primeiro lance.

O jogo termina empatado: o garoto, que estava melhor na partida mas que teve problemas com o tempo, acabou fazendo um lance ruim no final do jogo, que permitiu que o senhor mais velho acabasse conseguindo um empate.

Os melhores momentos deste jogo são apresentados num vídeo com mais de cinco milhões de visualizações, apresentado no YouTube neste link, e a partida é dissecada com a habitual competência por Rafael Leite no seu Xadrez Brasil, neste link. O garoto do vídeo se chama Magnus Carlsen, o jogador que alcançaria o maior rating ELO[1] da história (2882, em 2014) e é campeão mundial desde 2013. Já o senhor se chama Garry Kasparov, russo campeão mundial[2] entre 1985 e 2000, considerado por muitos o melhor jogador de xadrez de todos os tempos.

Em 2004, quando ocorreu o jogo descrito acima, Kasparov nunca tinha disputado uma partida contra um adversário tão jovem. Suas expressões de espanto, em muitos momentos da partida, são muito engraçadas: o gênio russo não parecia se conformar em estar sofrendo contra um garotinho aparentemente tão inofensivo.

Mas o que é maravilhoso mesmo no vídeo é que ele pode ser considerado o momento simbólico do final de uma era – a do domínio de Kasparov – e o início de outra, a de Magnus Carlsen, atual campeão mundial.


[1] O rating Elo é um método estatístico utilizado para se calcular a força relativa entre jogadores de xadrez, inventado pelo físico americano Arpad Elo.

[2] A história dos campeonatos mundiais de Kasparov é meio complicada, já que ele brigou com a FIDE em 1993.

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Exercícios Literários, Literatura
Proust/Machado
4 de novembro de 2019 at 12:05 0
Machado e Proust: Wikiquote/Britannica

Fiquei meio espantado com a frase de Machado de Assis, em Brás Cubas: “não te irrites se te pagarem mal um benefício: antes cair das nuvens, que de um terceiro andar” (já tinha lido a obra, mas não me lembrava em absoluto desta citação). Explico: ela lembra, de maneira notável, uma frase de Proust: “é melhor cair das nuvens do que cair dos planos”.

Logo fiquei pensando nos paralelos incríveis entre duas frases tão semelhantes: será que Proust sabia da obra de Machado, escrita em 1881, quando o francês tinha dez anos? Provavelmente não: se a literatura brasileira tem pouca penetração no exterior hoje em dia, imagine-se no século XIX. Então, só me restava comparar as duas sentenças, na maneira incrível como “planos”, na frase de Proust, se transformava em “terceiro andar”, na machadiana: nos dois casos a realidade atinge de maneira definitiva e inexorável o “sonhador”, aquele que “não mantém os pés na terra”, que “vive nas nuvens”.

Que notável! Dois gênios, separados por um oceano e algumas décadas de distância, praticamente criando uma transmissão de pensamentos!

Mas é melhor desconfiar, né? Antes de evoluir nos meus próprios pensamentos, resolvi dar uma olhadinha na internet: a frase do Proust realmente é citada, mas em sites de autenticidade duvidosa. Mais do que isso, nas minhas pesquisas em francês não surgiu nada parecido com a sentença supracitada. A frase, com quase 100% de certeza, não é de Proust, e quase caí no conto (eu a tinha lido como se fosse dele há muitos anos já).

Enfim, esse assunto tem tudo para cair em outra reflexão: quem inventou essa coisa? Provavelmente algum brasileiro, que conhecia a frase de original de Machado de Assis e resolveu dar um lustro afrancesado na coisa.

Pensando nisso, não posso deixar de me divertir ao pensar nesse suposto brasileiro piadista.

(Crônica baseada no seguinte desafio literário proposto por Robertson Frizero: No capítulo CXIX do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, o narrador-protagonista lista uma série de irônicos aforismos de sua autoria. O desafio de hoje é escolher um desses aforismos e escrever um conto, crônica ou poesia de até 500 palavras a partir de sua interpretação da frase. Estes são os aforismos machadianos: (...) Não te irrites se te pagarem mal um benefício: antes cair das nuvens, que de um terceiro andar.)

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Literatura
“Histórias mínimas”, de Jonatan Silva
27 de outubro de 2019 at 19:20 1
fonte: Tribuna do PR

O tipo de literatura tento fazer nos meus livros é uma literatura que se concentra em conflitos humanos, com uma dose maior ou menor de realismo – é como se fosse um espelho, mais ou menos límpido, da realidade. Existe outro tipo de literatura – por simplicidade, chamemo-la de “fantástica” - em que o texto literário é quase que separado da vida, e que se basta a si mesmo: neste caso, a realidade não aparece como um espelho, mas como metáfora. Os livros de Borges e Kafka pertencem a este tipo de literatura, mas pode-se argumentar que mesmo os mitos de criação todas as culturas, por exemplo, podem pertencer a este grupo.

As histórias deste excelente livro de contos “Histórias mínimas”, de Jonatan Silva (Kafka, 74 páginas, 2019) pertencem a este “outro tipo”, o "fantástico", de literatura. Em “Alfinetes”, a personagem não consegue viver sem alfinetes. Em “A Flor”, alguém vive embaixo de uma pilha de lixo. “Lázaro” tem um caco de vidro no olho. “Neve” é uma estranha história de um níquel e muita neve. “Esteves” é uma máquina faminta que se alimenta “de vinho e cigarros”. “O Sonho”, provavelmente o melhor conto do livro, conta a história de um velho cego com sonhos estranhos. “O pão do corvo” fala, de maneira brilhante, sobre a guerra, assim como o extraordinário “Adela”. “Piano de cauda” é uma história dolorosa sobre música.

Enfim, as “Histórias mínimas” de Jonatan Silva, tenho certeza, agradariam a Borges e Kafka. Mas o livro conta com alguns contos do tipo realista - creio que Dalton Trevisan apreciaria “Rosália”, por exemplo, transcrito a seguir:

“Rosália fora uma mulher voluptuosa, recheada de encantos que aos poucos se transfiguraram em uma velhice que lhe adornaria o corpo. Os homens, que tanto se engraçavam, se calavam ao vê-la passar. Restou-lhe somente o marido, um par de gatos e a obrigação de, pela primeira vez, ser fiel.”

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Literatura
“Longe das Aldeias”, de Robertson Frizero
20 de outubro de 2019 at 14:20 1
fonte: Facebook

São tantas as qualidades de “Longe das Aldeias”, de Robertson Frizero (77 páginas, Terceiro Selo, lançado em 2015), que é até meio difícil saber por qual começo.  De todo modo, vamos lá.

A primeira coisa que me chamou a atenção no romance é o não dito: é impressionante a quantidade de coisas que não são explícitas. Li “Longe das Aldeias” com a sensação de que estava numa espécie de labirinto, em que alguns caminhos levavam a lugar nenhum, enquanto outros, efetivamente, faziam aumentar a compreensão de onde eu estava.

Acho que o segundo aspecto que me chamou a atenção no romance é o fato de ele ser exatamente o contrário do que eu esperava: conheci Robertson Frizero num grupo (de e-mails, estávamos no fim dos anos 90!) sobre a banda portuguesa Madredeus, que eu amava incondicionalmente, hoje um tantinho a menos, e que o Robertson continua amando do mesmo jeito de sempre (sou meio traidor para música, meus amigos sabem disso). 

Bem, o negócio é que um livro chamado “Longe das Aldeias”, de um escritor fã de Madredeus, na minha cabeça deveria ser um livro bucólico, que trataria da beleza e da melancolia de uma aldeia em Portugal, cheio de saudade, mar, e amor – temas caros à grande banda portuguesa.

Que nada! “Longe das Aldeias” fala de guerra, de genocídio, de sofrimento e famílias destroçadas – e tudo daquela maneira elusiva comentada acima.

E o romance é grande literatura não apenas por causa do comentado acima: a solução que Robertson Frizero dá para os conflitos é brilhante, digna dos grandes mestres. 

Meses depois que acabei de ler esta pequena obra-prima, ainda fico impressionado em com o quanto de coisas o autor conseguiu colocar em apenas 77 páginas.

E, finalmente, você, que me lê, deve estar achando que não falei nada sobre o enredo, né? Fato. É uma homenagem: uma resenha elusiva para uma obra-prima elusiva!

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Literatura
“Submissão”, de Michel Houellebecq
20 de outubro de 2019 at 14:13 0
fonte: https://mondoweiss.net/2017/07/novelist-houellebecq-brotherhood/

Num futuro próximo, um partido islâmico chamado “Irmandade Muçulmana” ganha as eleições na França e começa a modifica o dia-a-dia dos franceses. O desemprego desaba rapidamente, já que as mulheres devem ficar em casa cuidando dos filhos, a poligamia é estimulada, as estudantes universitárias devem cobrir a cabeça e a educação é obrigatória somente até os doze anos de vida. Este é o tema de fundo de "Submissão", brilhante romance vagamente distópico do francês Michel Houellebecq (Alfaguara, 253 páginas).

O livro é contado em primeira pessoa por François, professor de literatura especialista no escritor francês J.K. Huysmans (1848-1907), escritor decadentista, autor da obra-prima "Às avessas" e que se converteu ao catolicismo no final da vida. François é solitário, cínico, e amante de mulheres bem mais jovens que ele.  

Assim como seu personagem principal, o romance "Submissão" é cínico e, apesar de parecer contra o islã em uma ou outra passagem, está longe de ser um manifesto antimuçulmano. Independentemente de qualquer coisa, o romance tem passagens engraçadíssimas e, como um todo, é delicioso de ler.   

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