Na galeria, de Franz Kafka
Literatura

Na galeria, de Franz Kafka

29 de maio de 2015 0

O extraordinário texto abaixo deve ser lido com a máxima atenção mas, se possível, de um fôlego só. Ele faz parte da obra-prima Um médico rural (São Paulo: Companhia das Letras, 2001), livro com narrativas curtas de Franz Kafka (um dos poucos do grande escritor tcheco publicados em vida).

Na galeria

Se uma amazona frágil e tísica fosse impelida meses sem interrupção em círculos ao redor do picadeiro sobre o cavalo oscilante diante de um público infatigável pelo diretor de circo impiedoso de chicote na mão, sibilando em cima do cavalo, atirando beijos, equilibrando-se na cintura, e se esse espetáculo prosseguisse pelo futuro que se vai abrindo à frente sempre cinzento sob o bramido incessante da orquestra e dos ventiladores, acompanhado pelo aplauso que se esvai e outra vez se avoluma das mãos que na verdade são martelos a vapor – talvez então um jovem espectador da galeria descesse às pressas a longa escada através de todas as filas, se arrojasse no picadeiro e bradasse o basta! em meio às fanfarras da orquestra sempre pronta a se ajustar às situações.

Mas uma vez que não é assim, uma bela dama em branco e vermelho entra voando por entre as cortinas que os orgulhosos criados de libré abrem diante dela; o diretor, buscando abnegadamente os seus olhos respira voltado para ela numa postura de animal fiel; ergue-a cauteloso sobre o alazão como se fosse a neta amada acima de tudo que parte para uma viagem perigosa; não consegue se decidir a dar o sinal com o chicote; afinal dominando-se ele o dá com um estalo; corre de boca aberta ao lado do cavalo; segue com olhar agudo os saltos da amazona; mal pode entender sua destreza; procura adverti-la com exclamações em inglês; furioso exorta os palafreneiros que seguram os arcos à atenção mais minuciosa; as mãos levantadas, implora à orquestra para que faça silêncio antes do salto mortal; finalmente alça a pequena do cavalo trêmulo, beija-a nas duas faces e não considera suficiente nenhuma homenagem do público; enquanto ela própria, sustentada por ele, na ponta dos pés, envolta pela poeira, de braços estendidos, a cabecinha inclinada para trás, quer partilhar sua felicidade o circo inteiro – uma vez que é assim o espectador da galeria apóia o rosto sobre o parapeito e, afundando na marcha final como num sonho pesado, chora sem o saber.

No posfácio que acompanha a edição o tradutor Modesto Carone deixa transparecer sutilmente sua preferência por Na Galeria dentro do livro Um médico rural: não só ele chama esta pequena narrativa de “excepcional”, como esta é uma das poucas a serem analisadas com uma certa profundidade – como se verá mais adiante.

Quanto a mim, Na galeria não só é meu texto preferido dentro do excepcional Um médico rural, como também é um dos mais belos textos que já tive oportunidade de ler. É uma narração totalmente visual e que segue por caminhos inesperados.

No primeiro parágrafo existe a hipótese de que uma bailarina frágil e tísica fosse impelida meses sem interrupção, por um diretor de circo impiedoso, a andar em círculos sobre o cavalo em torno do picadeiro. Este espetáculo poderia seguir  cinzento pelo futuro que se vai abrindo à frente. Até aqui temos o universo usual de Kafka (ainda que no campo da hipótese): o sofrimento não tem solução, não tem fim. Uma possibilidade de mudança aparece no final do parágrafo graças a um jovem espectador que talvez gritasse basta! ao ver a terrível situação da bailaria.

E é no início do segundo parágrafo que a situação toma um rumo totalmente inesperado. Esta parte se inicia com a frase Mas uma vez que não é assim: o que lemos anteriormente era uma mentira. A bailarina, na verdade, é uma bela dama que entra voando por entre as cortinas que os orgulhosos criados de libré abrem diante dela. O diretor tem um orgulho ilimitado dela, ergue-a cauteloso sobre o alazão como se fosse a neta amada. Além disso, beija-a nas duas faces e não considera suficiente nenhuma homenagem do público. A felicidade da bailarina é mostrada numa linda frase: ela própria, sustentada por ele, na ponta dos pés, envolta pela poeira, de braços estendidos, a cabecinha inclinada para trás, quer partilhar sua felicidade o circo inteiro. E é no final que Kafka atinge uma beleza descritiva de arrepiar: uma vez que é assim o espectador da galeria apóia o rosto sobre o parapeito e, afundando na marcha final como num sonho pesado, chora sem o saber. A verdade, pois, é muito melhor do que a terrível possibilidade apresentada no primeiro parágrafo: o espectador (que teria gritado basta! se a realidade fosse outra) chora de felicidade.

A estrutura de Na galeria é genial: existe uma oposição deliberada entre o Uma vez que não é assim, que anula a realidade do primeiro parágrafo, e o uma vez que é assim do final do segundo. Além disso, só existem dois pontos finais no texto, um em cada parágrafo – o que dá um ritmo veloz à narrativa. E Na galeria, como dito acima, é totalmente visual: Kafka apenas descreve o que se enxerga – aumentando enormemente a beleza do conjunto.O texto vem de chofre, rápido, como se chacoalhasse o leitor. É de tirar o fôlego.

Esta enorme beleza também foi sentida pelo tradutor Modesto Carone – e por isto sua sutil preferência, citada acima, por esta narrativa. Mas há uma pequena diferença entre a interpretação dele e a minha: no seu posfácio ele escreve que

(…) Na galeria, um verdadeiro poema em prosa composto por dois períodos e duas codas dialeticamente articuladas, em que os dados da realidade nua e crua do primeiro são apresentados como hipótese, ao passo que a versão distorcida e cor-de-rosa do segundo vem marcada pelas certezas do indicativo. Nada disso no entanto é estranho, principalmente para quem disse, um dia, que no mundo “há muita esperança, mas não para nós”.

Modesto Carone é um tradutor excepcional (é só comparar alguns trechos de suas traduções com algumas outras existentes para que se tenha uma idéia do que estou falando), um dos primeiros a verter as obras de Kafka para o português diretamente do alemão. Seus posfácios são simples, objetivos e profundos na análise das obras traduzidas – além de darem uma bela idéia de sua técnica de trabalho.

É com um pouco de insegurança, portanto, que discordo da opinião dele a respeito do sentido de Na galeria: não creio que a realidade, no texto, esteja no primeiro parágrafo, mas sim no segundo. Minha versão dos fatos é mais literal, enquanto que  Carone se prende mais à visão de mundo de Kafka, quase sempre pessimista. Eu creio que Kafka pode muito bem ter desejado dar um alívio às agruras de sua obra mostrando uma realidade mais cor-de-rosa – e por isto uma interpretação literal de Na galeria será sempre otimista. Ele pode simplesmente ter vislumbrado uma maneira de encontrar uma espécie de salvação pela Arte.

Talvez nenhuma das duas interpretações seja a correta: para quê, afinal de contas, alguém deveria tentar interpretar um texto tão extraordinariamente belo quanto Na galeria? Este poema em prosa, assim, deveria ser apenas sentido – e não analisado racionalmente.

Quem sabe Modesto Carone concorde, em parte, comigo: afinal de contas, quem chamou Na galeria de “poema em prosa” foi ele, e não eu.

(texto escrito em 2004)

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