JT Leroy, Jack Kerouac
Literatura

JT Leroy, Jack Kerouac

26 de abril de 2015 0

Jack Kerouac é o autor do romance mais importante da geração beat, famoso movimento de caráter artístico e social dos anos 50 que foi de uma importância fundamental para todas as correntes libertárias que se desenvolveram nas décadas seguintes: On the road (em português, “Pé na estrada”), que conta basicamente a história das viagens alucinadas, no final dos anos 40 e início dos 50, pelos Estados Unidos, de dois amigos: Sal Paradise, personagem baseado no próprio escritor, e Dean Moriarti.

Por toda a vida, Kerouac (que nasceu em 1922, no estado americano do Massachusetts, e faleceu em 1969, na Flórida) carregava consigo durante grande parte do tempo um caderno onde anotava acontecimentos, poemas e pensamentos de toda a ordem. Uma pequena parte deste gigantesco material foi editada e selecionada pelo historiador norte-americano Douglas Brinkley, e o seu trabalho resultou no livro Diários de Jack Keruac – 1947-1954, cuja tradução brasileira foi publicada recentemente pela Editora L&PM (359 páginas). Os textos desta edição são partes escolhidas dos diários do escritor durante o período em que o autor estava elaborando os seus dois primeiros livros, a saga familiar – que teve pouco sucesso – The town and the city (literalmente, algo como “A cidade e o município”), e On the road.

A publicação de diários de escritores importantes falecidos é, muitas vezes, temerária: afinal de contas, se o próprio autor confiasse na importância literária destes textos, ele mesmo tê-los-ia publicado. Este é o tipo de pensamento que vem à baila freqüentemente durante a leitura dos Diários de Jack Kerouac, já que muitos de seus trechos são redundantes, confusos e/ou desprovidos de maior interesse. Por outro lado, o livro é praticamente obrigatório para quem é interessado no movimento beat: a partir dele, por exemplo, pode-se saber que, ao contrário do que Kerouac sempre dizia, ele utilizou um longo tempo para preparar e escrever On the road. Além disso, seus Diários apresentam suas opiniões, muitas vezes contraditórias, sobre outros beats importantes, como Allen Ginsberg, Neal Cassady e William S. Burroughs, e mostram suas principais influências literárias: Céline, Dostoiévski e Mark Twain – Kerouac acreditava numa literatura que fosse escrita de maneira objetiva e direta, e se queixava de escritores “excessivamente sutis” como Marcel Proust. Outros aspectos importantes nos Diários são o capítulo final, originado do caderno de diários chamado “Chuvas e rios” – com descrições de muitas viagens de Kerouac que acabaram aparecendo em sua obra-prima – e a mostra de como foi fundamental para o autor ter uma mãe forte e compreensiva que, com grande dificuldade, “segurou as pontas” em casa enquanto ele não tinha nenhuma fonte de renda.

Mas o que mais impressiona – e, porque não dizer, apaixona – na leitura dos Diários é a personalidade do próprio Kerouac: o grande autor da geração beat tinha uma grande fé mística em Jesus Cristo, era atormentado – com freqüentes alterações de humor, passando rapidamente da euforia à depressão -, bastante esperançoso em se tornar um escritor importante, e profundamente preocupado em entender o sentido da vida: são muitos os trechos, com linguagem poética, em que ele tenta – de maneira muitas vezes confusa – atingir este objetivo.

Se Diários de Jack Kerouac é um livro autobiográfico que não foi escrito com a finalidade de ser publicado, a situação de Maldito Coração, o segundo livro escrito por JT Leroy (Geração Editorial, 213 páginas) é ironicamente oposta: o livro era supostamente autobiográfico, mas é o produto de uma farsa – foi escrito apenas para ser publicado, portanto. Ele conta a história do início da vida de Jeremiah, um rapaz que foi transformado em um travesti prostituto pela própria mãe, a também prostituta Sarah. Só que, na verdade, este JT Leroy – que supostamente era o Jeremiah – não existe: descobriu-se recentemente que ele é a criação de uma roqueira fracassada, Laura Albert – e quem circulou pelo mundo interpretando o seu papel é a mocinha Savannah Knoop, meia irmã do companheiro de Laura, Geoffrey Knoop (atualmente brigando com a ex-mulher na justiça pelos direitos autorais do autor inexistente). É claro que já não é mais a mesma coisa ler os livros de JT Leroy sabendo que aquilo tudo é apenas fruto da imaginação de uma autora, e não histórias baseadas em acontecimentos reais – de todo o modo, o que continua mais importante é saber se eles têm, ou não, valor literário.

O primeiro romance lançado por JT Leroy, Sarah – comentado recentemente aqui na Revista do Estado do Paraná – contava a adolescência do garoto Jeremiah e tinha, como principal qualidade, uma delirante atmosfera de superstições que fazia com que, às vezes, o leitor se sentisse entrando num universo paralelo – onde cervos empalhados têm poderes para ajudar prostitutas, e onde milagres ocorrem a cada esquina. Apesar de ter sido publicado posteriormente, Maldito Coração – que teve uma versão cinematográfica, a cargo da diretora Asia Argento – conta a história do início da vida de Jeremiah (antes dos acontecimentos narrados em Sarah, portanto). O novo romance tem características gerais de narrativa semelhantes às do anterior – narrativa propositadamente confusa (o que é coerente com a pouca instrução do personagem que conta a história), em primeira pessoa e no tempo presente – só que, no lugar da atmosfera ricamente delirante de Sarah, Maldito Coração pega pesado nos acontecimentos sórdidos.

No livro, o pequeno Jeremiah tinha pais adotivos de um bom nível financeiro, carinhosos e compreensivos. Só que a Sarah, sua insana mãe biológica, resolve querer seu filho de volta e, para isso, ela apela para o pai dela, um pastor protestante rico e extremamente rígido: como ela sabia de algum “esqueleto no armário” (que o livro não conta qual é) do avô de Jeremiah, este compra juízes para que ela recupere a guarda do filho. A partir daí, a as violências físicas e psicológicas a que ela submete o garoto são de revoltar o estômago: abandonos por semanas ou meses, ameaças verbais horrendas e absurdas, surras homéricas, uso de drogas pesadas diante dele, violência sexual (por parte dela e de seus namorados), transformação do menino num travesti. De tempos em tempos o avô de Jeremiah consegue a guarda dele, mas os espancamentos a que este fanático religioso submete o garoto não tornam a sua situação muito melhor.

Com o decorrer de Maldito Coração, vai ficando claro que a Sarah é uma doente mental que, no fundo e apesar de tudo, realmente gosta de Jeremiah – o qual, à medida que vai ficando mais velho, começa, morbidamente, a gostar de sofrer violências. Um final de impacto, espantoso mesmo, para um livro repulsivo – inferior certamente a Sarah – mas que exerce uma estranha atenção no leitor desavisado.

(publicado em junho de 2006 na revista dominical do jornal O Estado do Paraná)

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