Alceste é um sujeito correto. Correto demais, para falar a verdade. Não aceita hipocrisia. Fala a verdade, doa a quem doer. Um admirador dele, Oronte, lhe mostra um soneto e Alceste lhe responde que ele deveria parar com a poesia, já que o soneto é odioso. Reclama com seu amigo Philinte porque ele trata bem gente que não conhece direito, ou que tem má fama. Mas Alceste tem um ponto fraco: Célimène, garota por quem é apaixonado, é uma conhecida manipuladora dos sentimentos dos homens – mas dela o nosso Alceste perdoa tudo. Este é um resumo de “O Misantropo”, peça de Molière encenada pela primeira vez em 1666 (Jorge Zahar, 130 páginas, tradução de Barbara Heliodora).
Na introdução da peça, Barbara Heliodora comenta que, em outras duas peças do francês Molière (1622-1673), “O Avarento” e “Tartufo”, já comentadas aqui, o dramaturgo criticava com cores fortes tanto a avareza do protagonista da primeira peça quanto a hipocrisia religiosa do da segunda. Ainda segundo Heliodora, em “O Misantropo”, “porém, a questão é muito mais sutil, e o protagonista é criticado por levar sua integridade a excessos que prejudicam seu relacionamento com o mundo em que vive. Alceste por certo não merece riso tão forte ou cruel” quanto os protagonistas de ‘O Avarento’ e ‘Tartufo’, “porém Molière, com seu exemplar bom senso, mostra o engano da integridade e da indignação moral quando há perda de perspectiva”.
Questão difícil, esta. Parece inevitável concluir que a avareza ou a hipocrisia exageradas são características piores que a correção excessiva. Mas não tenho como não achar que, ao tocar num defeito poucas vezes lembrado (especialmente nos dias de hoje, em que tantos parecem tão corretos no Facebook), Molière foi até mais brilhante em “O Misantropo” do que em “O Avarento” e “Tartufo”.
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