Salmo 56, de São Gregório de Narek
Religião

Salmo 56, de São Gregório de Narek

24 de maio de 2017 1

Ainda não acabei de ler o livro “The Armenian Prayerbook” – “Livro Armênio de Orações” (Vem Press), de São Gregório de Narek (951-1003?). Também chamado de “Livro das Lamentações”, a obra é composta por 96 orações, que o autor esperava que servissem “de guia de orações para pessoas de toda parte”. Venerado como santo tanto pela Igreja Católica Armênia como pela Igreja Católica Romana, São Gregório de Narek foi recentemente proclamado “Doutor da Igreja” pelo Papa Francisco.

Mais ou menos como acontece com os livros dos carmelitas Santa Teresa d’Ávila e de San Juan de La Cruz, apreciados tanto por católicos como por amantes de literatura de modo geral, “The Armenian Prayerbook” é uma das principais obras da literatura armênia, seja ou não cristã. De fato, a qualidade literária de “The Armenian Prayerbook” (a tradução em inglês a partir do original em armênio) é assombrosa: a riqueza de suas imagens, seu gosto por contrastes, a força de suas descrições (tanto as de seus próprios pecados como as do amor e poder infinitos de Deus) fazem com que não sejam fora de propósito as comparações frequentemente feitas entre esta obra e livros como os “Salmos” de Davi ou as “Confissões” de Santo Agostinho.

No dizer de Thomas, J. Samuelian, na sua introdução de “The Armenian Prayerbook”, no livro “o empilhamento de metáforas e símiles e a repetição de contrastes previsíveis são fascinantes. A repetição e as variações dos sons e das ideias configuram uma ressonância dupla, dentro do texto e do leitor/ouvinte. Cada imagem no texto lança luz sobre outra, e cada uma fala para pessoas diferentes de maneiras diferentes”.

Achei que se eu terminasse o texto por aqui não daria uma ideia do maravilhoso que é “The Armenian Prayerbook”. Então segue uma tradução aproximada do Salmo 56 do livro:

Salmo 56

Falando com Deus das Profundezas do Coração

A

Com relação aos cavaleiros da morte,
às raízes do fruto amargo da árvore da danação,
parentes hostis, adversários íntimos, filhos traidores, eu agora
devo descrevê-los em detalhes.
Eles são
meu coração sinistro,
minha boca fofoqueira,
meus olhos lascivos,
meus ouvidos indecentes,
minhas mãos assassinas,

meus rins fracos,
meus pés rebeldes,
meu andar arrogante,
pegadas torcidas,
respiração imunda,
inclinações sombrias,
entranhas secas,
mente macilenta,
vontade inconstante,
depravação incorrigível,
virtude vacilante,
alma banida,
legado dissipado,
besta ferida,
pássaro golpeado,
fugitivo no precipício,
criminoso capturado,
pirata afogando-se,
soldado traidor,
lutador relutante,
guerreiro indisciplinado,
trabalhador desleixado,
adorador sem fé,
pastor mundano,
sacerdote ímpio,
ministro desinteressado,
clérigo desdenhoso,
sábio demente,
retórico grotesco,
modo arrogante,
semblante desavergonhado,
trejeito insolente,
tom repulsivo,
forma subumana,
beleza sinistra,
carne apodrecida,
sabor doentio,
pomar soterrado,
vinha infestada,
jardim de urtigas,
espiga estragada,
mel infestado de ratos,
pária maltrapilho,
assaltante soberbo,
herege obtuso,
sectário irreconciliável,
charlatão falador,
valentão tapado,
brutalmente mau, infernalmente ganancioso,
arrogante sem vergonha,
ateu frenético, assassino pronto para o ataque,
semeador de espinhos, comportamento lamentável,
majestade aviltada, esplendor manchado, capacidade desperdiçada,
grandeza humilhada, glória pisoteada,
desobediência persistente, erro intencional,
administrador negligente, mentor traiçoeiro, amigo alienado,
funcionário negligente, conselheiro desleal, amigo alienado,
oficial corrupto, sócio ganancioso,
chefe sovina, supervisor fraudulento,

alma sem compaixão, desejo sem caridade,
hábito odioso, apetite insaciável,
ações imprudentes, danos invisíveis,
maldições secretas, resultados contraditórios,
comerciante descuidado, explorador glutão,
oficial bêbado, guardião dissimulado,
semeador da discórdia, porteiro dorminhoco,
mendigo esnobe, rico ingrato,
secretário desonesto, zelador desleal,
parentes sarcásticos,
mensageiro atrasado, emissário teimoso,
enviado desonroso, mediador estúpido,
governante banido, rei fraco, imperador de espírito abatido,
príncipe desonesto, general saqueador,
juiz parcial, turba caprichosa,
para inimigos – motivo para deboche,
para amigos – motivo para lágrimas,
para os escritores – motivo para censura,
para adversários – motivo para acusação.
Pois, embora eu tenha sido intitulado com os nomes mais importantes,
pelas minhas obras eu ganhei as piores destas descrições.
Assim, estas são minhas inúmeras estratégias sedutoras,
que eu permiti que me iludisse em minha ingenuidade ou
que eu permiti que prevalecesse sobre mim em minha fraqueza,
condenando-me voluntariamente à morte.

B

Agora, qual das coisas listadas acima,
abomináveis para Vós e devastadoras para mim,
devo oferecer como serviço para Vós?
Quais destas coisas abomináveis
apresentarei diante de Vossa Santa Majestade?
Por quanto tempo Vossa paciência
suportará estes inúmeros pecados?
Quanto Vós ireis perdoar?
Como Vós permanecereis em silêncio?
Como Vós mesmo suportareis ouvir?
Como Vós podeis poupar a vara
quando eu sou digno de ser espancado até a morte?
Mas Vós visitais, com a misericórdia de Vossa luz,
a escuridão do lado escuro da alma,
para curar, perdoar e dar a vida.
Oh força que não pode ser dissuadida!
A Vós glória em todas as coisas,
Amém.

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There is 1 comment

  • Valéria disse:

    Lindo demais!

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