A primeira coisa que chama a atenção em “Crônicas – Vol. 1”, espécie de livro de memórias do cantor e compositor Bob Dylan (Editora Planeta, 325 páginas), é o que ele não tem: nele basicamente não costa nenhuma data, e nenhuma ordem cronológica é seguida. Mais do que isto – ao contrário do que poderia se esperar de um livro de memórias de um cantor consagrado – suas músicas mais famosas praticamente não são citadas, os nomes de seus discos não são relacionados, e não há nenhuma descrição objetiva de como foi o caminho para seu sucesso. Nada disso. “Crônicas – Vol. 1” é um livro cuidadosamente dispersivo e que se apoia basicamente em pensamentos, impressões e sensações de Bob Dylan.
No livro, a cada capítulo se refere a um episódio ou período de sua vida. No primeiro, “Abrindo o Placar”, o cantor conta como foi emocionante assinar com a Columbia; o segundo, “A Terra Perdida”, fala de algumas coisas importantes de sua formação cultural e de suas primeiras impressões de Dylan em Nova Iorque, recém-chegado da pequena Duluth, Minnesota (o que ocorreu depois da assinatura de contrato com a Columbia: o livro não segue nenhuma ordem cronológica, conforme comentado acima); o terceiro,, “New Morning”, conta sua batalha para não ser um “líder de massas”, como os expoentes da contracultura dos anos sessenta queriam que ele fosse; o quarto, “Oh Mercy”, descreve algumas seções de gravação nos anos 80; finalmente, “Rio de Gelo”, o último capítulo, se concentra basicamente sobre o começo de sua carreira e sobre os artistas que o inspiraram naquela fase.
Mas é muito simplista resumir cada capítulo de “Crônicas – Vol. 1” por seu tema principal: a todo o momento Dylan faz digressões, às vezes abarcando várias páginas, sobre pessoas ou eventos que cita. Muitas vezes estas digressões englobam outros períodos de tempo na sua vida – o que dificulta um pouco a leitura, porque é fácil se perder nestas idas e vindas. Outra característica do livro que pode pegar no contrapé o leitor mais desavisado é a grande quantidade de cantores folk mais ou menos obscuros que são longamente comentados pelo autor: como Dylan parece partir do pressuposto de que todos os que estão lendo seu livro são profundos conhecedores destes artistas, seus comentários podem passar batidos para não-experts.
De todo o modo, se para o fã do cantor a leitura do livro é praticamente obrigatória, os “defeitos” apontados acima não devem servir de empecilho para que o leitor “comum” aproveite com prazer “Crônicas – Vol. 1”: como pontos altos do livro, posso apontar a riqueza poética e sensorial de vários trechos; o interessantíssimo estilo literário de Bob Dylan (do qual as já comentadas ausências de cronologia e não citação de detalhes aparentemente importantes obviamente faz parte); e, por último, mas não menos importante, as notáveis e muitas vezes surpreendentes confissões do cantor – como quando ele mostra que criou um personagem dele mesmo, meio biruta, para que a contracultura não o tomasse por líder: Dylan apenas quer ser um bom cantor e compositor, e mais nada.
(Publicado no Suplemento Dominical do jornal O Estado do Paraná em 2006)
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