Eu estava passeando com minha filhinha no Passeio Público, espécie de zoológico antigo e de localização central na cidade de Curitiba. Tendo sido num passado quase distante um local de encontro de intelectuais, atualmente o Passeio Público, principalmente nos finais de semana, abriga uma grande quantidade de empregadas domésticas, operários, caixas de supermercado – ou seja, representantes das chamadas “camadas menos favorecidas da sociedade”.
Era um lindo sábado de sol, o Passeio Público estava lotado, e eu e minha filha estávamos parados olhando uma gaiola com algumas aves dentro.
Então se aproximou um casal com uma filhinha. A menina deles tinha mais ou menos a idade da minha, e os pais, de mãos dadas, pareciam evangélicos. A mulher estava com uma saia comprida, e seu marido com um paletó (acho que não tinha gravata, mas não estou certo disto). Havia algo de profundamente tocante naquele casal digno, com roupas bem passadas, arrumadas e que pareciam ser muito, mas muito antigas mesmo. Imagino que eles não tivessem outras vestimentas “sociais” no guarda-roupa. Provavelmente utilizaram aquelas mesmas roupas seguidamente, durante longos e sofridos anos. E eles andavam de cabeça erguida. E eles andavam com grande dignidade.
Antes de continuar, é preciso comentar mais uma coisa: Curitiba é uma cidade com poucos pardos e com um número menor ainda de negros. E – aqui é que o drama começa – os três (o pai, a mãe e a filhinha) eram negros, de uma tonalidade extremamente escura, rara de se ver nesta cidade mais racista que o normal do Brasil.
Voltando ao Passeio Público: a filhinha deles quis ver a mesma ave que nós estávamos vendo. E então eu percebi o olhar do pai e da mãe dela, arregalado, mostrando medo. Eles pararam no meio do caminho, olhando-nos assustados, enquanto que a menininha deles continuou em frente, sem nos dar bola. Assim ficamos alguns segundos: eu, minha filhinha e a filhinha deles olhando as aves, bem perto da gaiola, enquanto que o casal negro ficava um pouco para três, visivelmente desconfortável com a situação.
Pensei então que eles deveriam estar com medo de mim e da minha filha, que temos a pele branca e parecemos ricos – além de estarmos vestidos com roupas bem mais novas que as deles.
Para quebrar o gelo, falei com a minha filha, apontando a criança deles: “viu, filhinha, que menininha bonitinha?”, e fiz um sorriso de aprovação para os seus pais. Neste ponto minha filhinha sorriu para a filhinha deles, que sorriu em retorno.
Quando viram minha disposição amistosa, chamando a filhinha deles de “bonitinha”, assim, como se ela fosse branca, o casal negro sorriu, eliminando o medo em seus olhares instantaneamente. Eles sorriram de uma maneira, o que me dói até hoje, aliviada. Aliviados porque, pelo menos daquela vez, o pai e a filha ricos e brancos trataram a filhinha deles como trataria qualquer outra criança rica e branca.
(texto escrito entre 2002 e 2003)
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