Laranja Mecânica, Catatau
Literatura

Laranja Mecânica, Catatau

9 de fevereiro de 2016 0

O jovem Alex na versão de Laranja Mecânica feita por Stanley Kubrick para o cinema.

– Então, o que é que vai ser, hein?

Éramos eu, ou seja, Alex, e meus três druguis, ou seja, Pete, Georgie e Tosko, Tosco porque ele era muito tosco, e estávamos no Lactobar Korova botando nossas rassudoks pra funcionar (…) O Lactobar Korova era um mesto de leite-com, e possa ser, Ó, meus irmãos, que tenhais esquecido como eram esses mestos, pois as coisas mudam tão skorre hoje em dia (…)

É assim que começa o clássico do escritor inglês Anthony Burgess, Laranja Mecânica, publicado recentemente no Brasil pela Editora Aleph [200 páginas], com excelente tradução de Fábio Fernandes. A sensação de estranheza é evidente. Um grande número de palavras como mesto, rassudoks e leite-com aparecem de supetão, e em praticamente todas as frases. Tudo faz parte de uma gíria criada pelo autor, chamada nasdat.

O objetivo original na criação deste linguajar era este mesmo: dar ao leitor uma enorme sensação de estranheza – Burgess nem queria que estas palavras esquisitas fossem “traduzidas”, mas já nas primeiras edições apareceram glossários explicativos [a presente edição não foge a esta regra; no prólogo, Fábio Fernandes explica seu método de tradução].

Laranja Mecânica conta a história de Alex, líder de uma pequena gangue juvenil. Ao mesmo tempo em que cultiva hábitos ultraviolentos – agressões, roubos, estupros –, é fã e profundo conhecedor de música clássica, principalmente Beethoven. O livro, contado pelo protagonista em primeira pessoa, divide-se em três partes bem distintas. A primeira é uma chocante série de descrições de atitudes violentíssimas do personagem principal e sua gangue. A segunda conta a história de sua prisão e do assustador método de lavagem cerebral – que começava a ser testado justamente em Alex – que a justiça criou para desencorajar facínoras de praticar seus crimes. Na última, ele é solto, depois de grande pressão da oposição contra o governo no “caso Alex”, e volta à sua vida de ultraviolência. O último capítulo do livro, entretanto, mostra o personagem principal já levando uma vida mais tranqüila, sem crimes.

Apesar de situado em um futuro impreciso, Laranja Mecânica reflete uma série de preocupações do autor relacionadas à época em que ele foi escrito, no início da década de 60. As gangues mostradas no livro têm relação direta com a delinqüência juvenil de então – era época das brigas entre mods e rockers. E o método de lavagem cerebral testado em Alex é reflexo da preocupação de Burgess com o totalitarismo da União Soviética – não por acaso, o nasdat possui diversas expressões de origem russa.

Um pouco por causa dessas questões temporais, quem sabe, o livro não envelheceu muito bem. A história parece meio sem sentido em muitos trechos, e grande parte do impacto que ele deve ter tido se perdeu de 1961 para cá. Mas pior do que tudo é o final “feliz”, onde Alex quer mudar de vida, mas sem que o leitor saiba o porquê, já que ele não parece se arrepender de nada. Bem fez Stanley Kubrick em retirar este final da sua [genial] versão cinematográfica de Laranja Mecânica. Não é à toa que o filme é quase sempre considerado superior ao livro que lhe deu origem.

 



Se a invenção de uma gíria é um dos aspectos essenciais da obra clássica de Anthony Burgess, em Catatau, de Paulo Leminski [430 páginas], o experimentalismo vai bem mais adiante. O livro, considerado a obra máxima do escritor curitibano, é uma verdadeira tour de force lingüística, na qual o autor inventa um sem número de palavras, além de utilizar até a exaustão arcaísmos e termos vindos de outras línguas – notadamente o latim.

Baseado em uma fantasia histórica que supõe que o filósofo Descartes,codificador do racionalismo, viera para Recife junto com a expedição holandesa de Maurício de Nassau, Catatau é de leitura extremamente difícil – para dizer o mínimo. A impressão que fica é a de que não há nenhuma frase “usual” em todo o livro. Graças não só aos experimentos lingüísticos de Leminski como também a um certo irracionalismo que permeia toda a obra, já que Catatau é contado em primeira pessoa por Cartésio [nome “de fantasia” para Descartes] e seus pensamentos/idéias/declarações são freqüentemente desencontrados.

Por tudo isto, sugere-se que a leitura tenha início lá pela página 270 desta edição para lá de caprichada da Travessa dos Editores. Dali até o final são apresentados diversos textos de diversos autores explicando Catatau, além de valiosas informações biográficas e de cunho lingüístico/histórico. Depois disso, o leitor certamente se sentirá mais seguro para tentar vencer o desafio que é ler o título mais ambicioso do curitibano Paulo Leminski.

(texto publicado no Mondo Bacana em 2005)

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