O Hitler da História e O Duelo: Churchill x Hitler são dois extraordinários livros sobre o mesmo período, e escritos pelo mesmo autor – o húngaro radicado nos Estados Unidos John Lukács. As semelhanças, entretanto, param por aí.
O Duelo: Churchill x Hitler (Jorge Zahar Editor, 241 páginas – cujo título original em inglês é somente The Duel) é um fascinante e detalhado relato dos 80 dias em que Hitler esteve mais próximo da vitória total na Segunda Guerra Mundial. Estes 80 dias vão de 10 de maio de 1940, com o que Lukács chama de Primeira Coincidência – no mesmo dia Churchill assume o poder e Hitler inicia a ofensiva contra a França – até 31 de julho, o dia em que Roosevelt decide apoiar a Inglaterra e Hitler comunica a seus generais que vai invadir a Rússia.
Lukács descreve paralelamente a enorme dificuldade que a Inglaterra teve nesse período e a incrível seqüência de vitórias alemãs. A França é vencida no final de maio e os Estados Unidos estavam extremamente relutantes em entrar na guerra. Hitler desejava a todo o custo um acordo de paz com Churchill – a proposta do Führer era a seguinte: a Inglaterra cederia a Europa ocidental ao alemães mas, em troca, teriam seu império intocado. Nestas circunstâncias, a resistência do primeiro-ministro inglês foi muito mais difícil e a vitória alemã muito mais próxima do que comumente se imagina. Ao contrário da antiga idéia estabelecida, Lukács defende que Hitler não desejava invadir a Rússia e nem achava o Lebensraum (*) tão profundamente importante para os alemães. Segundo o autor de The Duel, o ditador nazista só invadiu a Rússia para forçar a Inglaterra a assinar a paz, já que seria improvável que Churchill continuasse lutando contra uma Alemanha senhora de toda a Europa e de toda a Rússia.
Além da descrição minuciosa dos fatos históricos e de uma detalhada descrição do dia-a-dia dos dois líderes durante os 80 dias em estudo, O Duelo: Churchill x Hitler dá enorme destaque para o perfil psicológico de ambos. No livro Hitler emerge como uma pessoa fria, calculista, praticamente sem senso de humor, que se alimentava praticamente como um asceta e que quase não tomava bebidas alcoólicas. Já Churchill tinha um humor bem mais refinado, era emotivo – freqüentemente ia às lágrimas -, e, embora bebesse bastante, aparentemente diminuiu em muito o consumo de álcool durante os 80 dias do duelo. Ambos iam dormir tarde e acordavam tarde. Os dois líderes tinham inteligência ágil – mas profunda -, grandes conhecimentos históricos e ótima penetração psicológica – mas Hitler confiava mais na intuição do que o primeiro-ministro inglês. Uma característica marcante do Führer era saber o ponto fraco de seus inimigos, embora tenha se equivocado freqüentemente em relação a Churchill. Segundo Lukács, a diferença mais marcante entre os dois era que Hitler era movido principalmente pelo ressentimento e o ódio aos inimigos, enquanto que o primeiro-ministro britânico era muito mais magnânimo.
Se O Duelo: Churchill x Hitler impressiona pela detalhada análise dos fatos, O Hitler da História (Jorge Zahar Editor, 251 páginas) impressiona pela extensão dos conhecimentos, pela profundidade – e, também, pelo estilo. O livro é uma análise das biografias existentes sobre o ditador nazista, onde Lukács, como diz a orelha do livro, age como uma espécie de “promotor, colocando as biografias no banco dos réus”. O livro é dividido em capítulos, cada um versando sobre um aspecto da vida ou do legado de Hitler – e a maneira como cada biógrafo analisa este determinado aspecto é julgada, então, por Lukács.
O autor de O Hitler da História é contundente. O revisionista inglês David Irving é criticado, por exemplo, por usar muitas fontes de pesquisa falsas ou mesmo inexistentes. No outro extremo do espectro das análises sobre Hitler, o anti-nazista radical norte-americano David Schirer, autor de Ascensão e Queda do III Reich, é chamado de “superficial” e de “germanófobo”. Lukács considera que a melhor das biografias “longas” de Hitler é a de Joachim Fest (Adolf Hitler: Eine Biographie), e, entre as menores, os maiores elogios vão para a de Percy Ernst Schramm (Hitler: The Man And The Military Leader).
Ao mesmo tempo em que julga os trabalhos alheios, Lukács apresenta sua própria visão da personalidade de Hitler. Muitos dos mitos criados – e defendidos por Schirer, por exemplo – para menosprezar o ditador nazista são demolidos em O Hitler da História. Segundo este, o ditador nazista tinha uma vida sexual normal – não era sexualmente pervertido, portanto; era mais talentoso como pintor e arquiteto do que usualmente se admite; era corajoso; e não tinha acessos histéricos. Mesmo o racismo de Hitler era inconstante, já que ele fazia alianças com, por exemplo, árabes, japoneses, romenos e búlgaros – seu grande ódio racial era reservado contra os judeus mesmo. A sua única fraqueza pessoal era uma tendência à hipocondria. Mais do que isso, Lukács defende – ao contrário daqueles que crêem que o ditador nazista era conservador, graças à importância dos grandes industriais e proprietários de terra em seu governo – que Hitler era um verdadeiro revolucionário, e que representava algo realmente novo, enquanto que Churchill defendia os velhos ideais democráticos (**). Em O Hitler da História é mesmo defendida a hipótese de que, caso ganhasse a guerra, Hitler tiraria aos poucos o poder dos mais ricos para que a Alemanha fosse se aproximando de algo parecido com o socialismo. Outra novidade do poder de Hitler é a grande importância que este dava à opinão do povo (Volk) – ninguém, em sã consciência, pode negar que a grande maioria do povo alemão realmente apoiava o ditador nazista (***). O julgamento correto e imparcial dos fatos em O Hitler da História também é notado no estilo literário empregado: há uma preocupação clara, em todo o livro, em se utilizar a palavra precisa, a palavra justa. Por exemplo, ao contrário de boa parte das obras do período nazista, Lukács não acha correto se referir a Hitler como sendo O Mal, nem como sendo demoníaco.
É importante ressaltar, entretanto, que Lukács não é, em absoluto, um revisionista: não negando os enormes talentos de Hitler, ele o culpa por tê-los usado mal (****).
(*) no seu livro Mein Kampf (Minha Luta) Hitler defende a idéia de que apenas com a invasão da Rússia Bolchevista o povo alemão teria sua sobrevivência assegurada, graças à obtenção do Lebensraum – espaço vital.
(**) Interessante observar aqui que fica claro, na leitura de O Hitler da História, que para Lukács nem sempre o mais novo é o melhor.
(***) Outro aspecto a ser notado é que Lukács acha que, por pior que tenha sido o nacional-socialismo, os ideais de nacionalismo (já que a população se identifica sobremaneira com a noção de Pátria – é só notar como o socialismo internacionalista ruiu, por exemplo) e de socialismo(com as suas noções de Previdência e bem-estar social) acabaram vencedoras após a guerra.
(****) de leitura saborosa em O Hitler da História são suas notas, com importantes e esclarecedoras informações complementares ao texto. Estas notas ocupam as 58 últimas páginas do livro (por isso não podem ser chamadas de rodapé). Muitas vezes, após a citação de uma frase de outro autor ou de um personagem histórico, aparece um cortante comentário de Lukács. Por exemplo, reproduzo aqui a nota 33 da página 227:
- E. Jäckel, Hitler in History p.89-90. “E quebrado imediatamente”. Esta conclusão talvez seja simplista demais.
Outras notas simplesmente reproduzem um comentário de Lukács (nota 11, p.235):
- Uma tendência que têm em comum com os defensores mais circunspectos – ou parciais – de Napoleão é atribuir aos britânicos intenções cruéis contra seu país. (Jacques Bainville, por exemplo, no caso do primeiro; Andreas Hillgruber, no caso do segundo.)
Importantes também são as notas com comentários extensos, onde Lukács aprofunda, normalmente com maestria, o assunto tratado no corpo do livro. Um bom exemplo disto são as notas em que Lukács nota semelhanças entre Hitler e o Anticristo – neste sentido, é interessante notar também que, em O Duelo: Churchill x Hitler, Lukács notava a presença do dedo de Deus em um ou outro acontecimento histórico.
(texto escrito em 2002)
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