Fernando Pessoa: Multi-homem
Literatura

Fernando Pessoa: Multi-homem

9 de outubro de 2015 0

Quando vivo (nasceu em Lisboa e 13 de Junho de 1888 faleceu na mesma cidade a 30 de Novembro de 1935), o poeta português Fernando Pessoa só conseguiu, fora algumas coletâneas de poemas em inglês, publicar um livro chamado “Mensagem”, que era uma glorificação dos heróis portugueses do passado, ao modo de Camões. Por outro lado, atualmente sua obra é cada vez mais valorizada pelo mundo todo. Em 1994, por exemplo, o famoso crítico norte americano Harold Bloom incluiu o poeta português em seu Cânone Ocidental, livro que nomeava os autores ocidentais mais importantes de todos os tempos – uma lista, aliás, polêmica, que incluía os ingleses Jane Austen e Charles Dickens, mas que excluía o grande romancista francês Honoré Balzac. Recentemente, o Prêmio Nobel José Saramago apontou Pessoa como uma de suas três maiores influências literárias, ao lado do argentino Jorge Luis Borges e do tcheco Franz Kafka. A gigantesca importância de um dos maiores poetas de língua portuguesa de todos os tempos, comparável a Camões, não faz senão crescer com o tempo.

A obra de Fernando Pessoa é não só de grande qualidade literária como é multifacetada e, sob certos aspectos, também misteriosa. A maior parte de seus escritos – diferentemente de “Mensagem”, citado acima – foram assinados por heterônimos, autores fictícios que chegam a constituir uma “personalidade” própria (o criador dos heterônimos chama-se “ortônimo”). São quatro os mais importantes heterônimos de Fernando Pessoa: Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e o “semi-heterônimo” Bernardo Soares.

Álvaro de Campos “nasceu” em 1890, e “era” engenheiro. Foi o único dos heterônimos de Fernando Pessoa que mudou de estilo literário durante sua “vida”: começou decadentista e terminou escrevendo poemas futuristas, que louvam a vida industrial, o movimento da modernidade, o barulho das grandes cidades. Um dos mais importantes – senão o mais importante – dos poemas de Pessoa é assinado por Álvaro de Campos e é chamado Tabacaria. Um poema pessimista (“Falhei em tudo. Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.”; “Que sei eu do que sei, eu que não sei o que sou?” ; “Serei sempre o que não nasceu para isso. Serei sempre o que não tinha qualidades.”), complexo na relação do autor com seus semelhantes (“O homem saiu da Tabacaria (metendo troço na algibeira das calças?). / Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica”) e, afinal, belíssimo (“Não sou nada. / Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada. / À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”).

Ricardo Reis tem ano de “nascimento” (1937), mas não de morte: pelo fato de Pessoa não ter “matado” sua criatura, o já citado José Saramago escreveu todo um romance, o excepcional O ano da morte de Ricardo Reis, contando a história da volta do poeta, que era médico e morava no Brasil, para Portugal (como se pode perceber desde o título do livro, Saramago acabou por “matar” o heterônimo). “Discípulo” de outro heterônimo que será comentado mais adiante, Alberto Caeiro, Ricardo Reis, segundo Maria Alice Galhoz, tem “a renúncia de quem atingiu os píncaros de humana lucidez e abstrai seus conceitos de impermanência e símbolos da contemplação voluntária de uma natureza que o homem iguala à essencialidade ideal de que lhe basta”. Esta forma de contemplação pode ser observada em poemas como “Cada coisa tem seu tempo” (“Cada coisa tem seu tempo. / Não florescem no inverno os arvoredos, / Nem pela primavera / Têm branco frio os campos. // À noite, que entra, não pertence, Lídia, / O mesmo ardor que o dia nos pedia. / Com mais sossego amemos / A nossa incerta vida.”) e “Segue o teu destino” (“Segue o teu destino, / Rega as tuas plantas, / Ama as tuas rosas. / O resto é a sombra / De árvores alheias. // A realidade / Sempre é mais ou menos / Do que nós queremos. / Iguais a nós-próprios.”).

“Escritor” de um livro que tem importância cada vez mais reconhecida pelo público e pelos estudiosos, o fragmentário O livro do desassossego, espécie de “autobiografia sem fatos” composta por reminiscências, pensamentos e observações mais ou menos esparsas, Bernardo Soares era considerado pelo próprio Fernando Pessoa como um “semi-heterônimo”, já que – especula-se – há muito do próprio poeta em Bernardo Soares. Isto pode ser mostrado, por exemplo, neste trecho: “Meu Deus, meu Deus, a quem assisto? Quantos sou? Quem é eu? O que é este intervalo que há entre mim e mim?”, em que o “semi-heterônimo” pode ser o próprio Pessoa “se perdendo” entre tantos heterônimos… Se bem que no grande poeta português o mistério sempre vence. Não seria tudo isto fingimento? Afinal de contas, o próprio Fernando Pessoa assinou o famosíssimo “Autopsicografia” (“O poeta é um fingidor. / finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente.”)

Todos os trechos reproduzidos acima foram retirados da ótima coletânea organizada por Luiz Ruffato, “Quando fui outro” (Alfaguara, 221 páginas), cuja leitura, obviamente, é mais do que recomendada. Prova da pujança literária e editorial de Fernando Pessoa é o lançamento de mais duas de suas obras por outras editoras: Poemas Completos de Alberto Caeiro foi lançado pela Hedra (168 páginas) e O banqueiro anarquista, pela José Olympio (80 páginas).

Ler o livro editado pela Hedra é uma excelente oportunidade de conhecer profundamente o único heterônimo importante de Fernando Pessoa que ainda não tinha sido descrito aqui, Alberto Caeiro. Ele “nasceu” em 1889 e “faleceu” em 1915, e era adepto de uma linha filosófico-poética vagamente descrita como “sensacionismo”. Ele não acredita em nada que não seja a pura Natureza: “O único sentido íntimo das coisas / É elas não terem sentido íntimo nenhum.” ; “Há metafísica em não pensar em nada.” ; “Eu não tenho filosofia: tenho sentidos… / Se falo na Natureza não porque saiba o que ela é, / Mas porque a amo, e amo-a por isso, / Porque quem ama nunca sabe o que ama / Nem sabe porque ama, nem o que é amar…” Uma das poesias mais famosas – e belas – de Alberto Caeiro compara o famoso Tejo com o rio de sua aldeia: “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.”

Finalmente, o pequeno conto que é “O banqueiro anarquista” traz um paradoxo desde o seu título: afinal, é sabido que o anarquista, de modo geral, sequer aceita a propriedade privada (“Propriedade é roubo!”, já dizia o famoso Proudhon), enquanto que o banqueiro é um dos maiores símbolos do capitalismo. O conto de Fernando Pessoa é um diálogo em que o tal “banqueiro anarquista” tenta convencer seu interlocutor, através de um sem-número de sofismas, de como ele conseguia ser as duas coisas ao mesmo tempo. Interessante, um tanto divertido, mas mais recomendado para os fãs de carteirinha do poeta português do que para o público em geral.

(publicado na Revista Dominical do Jornal O Estado do Paraná, de 12 de novembro de 2006)

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