John Berendt: Veneza por outros olhos
Literatura

John Berendt: Veneza por outros olhos

7 de outubro de 2015 0

Veneza é uma cidade em que a maioria dos habitantes se conhece, já que não existem carros e todos andam a pé na maior parte do tempo: isto, somado à sua enorme quantidade de pontes (muitas delas com escadas), faz com que idosos ou pessoas com problemas de locomoção tenham dificuldade em viver por lá. A ausência de automóveis também faz com que a cidade italiana seja bem mais silenciosa do que outras de seu porte. Veneza tem uma grande quantidade de ruelas que acabam fazendo que até seus moradores às vezes se percam no meio do verdadeiro labirinto formado por elas. Com seus canais, pontes, história e charme, a cidade atraiu para si muitos escritores do primeiro time, como Ezra Pound, Henry James e Robert Browning, que lá moraram durante longos períodos de suas vidas.

Os venezianos pensam em si próprios como venezianos primeiro, e depois como italianos. Segundo um de seus nobres mais importantes, o conde Girolamo Marcello, “em Veneza estão todos encenando, todos representam papéis, e os papéis mudam. O segredo para se entender os venezianos é o ritmo – o ritmo da lagoa, das marés, das ondas… O ritmo de Veneza é como a respiração. Maré alta, pressão alta: tenso. Maré baixa, pressão baixa: descontraído. Os venezianos não estão sintonizados ao ritmo da roda. Isso é para outros locais, locais com veículos motorizados. Nosso ritmo é o do Adriático. O ritmo do mar”. Ainda segundo o conde, para os habitantes da cidade as pontes não são vistas como obstáculos, e sim como transições: “passamos por elas bem devagar. Fazem parte do ritmo. São junções entre dois atos no teatro, como mudanças de cenário, ou como a evolução do primeiro para o segundo ato em uma peça teatral”. Para Marcello, “os venezianos jamais falam a verdade. O verdadeiro sentido das nossas palavras é, precisamente, o oposto do que dizem”.

Estas e muitas outras informações sobre a lendária cidade italiana são mostradas em Cidade dos anjos caindo (Objetiva, 380 páginas), de John Berendt, escritor americano na linha do new journalism, a mesma de, por exemplo, Truman Capote e Gay Talese. Como o próprio autor explica, “é um livro de não-ficção, mas escrito do ponto de vista de um romancista, usando técnicas literárias que um romancista utilizaria. Você não diz, como um jornalista diria, simplesmente: ‘O homem disse isso e isso’. Você descreve o tipo de olhar, a reação das pessoas no quarto. Então, lê-se o livro como se fosse um romance, mas é tudo verdade” – realmente, se não fosse a advertência inicial de que o livro é de não-ficção, ficaria muito para o leitor desavisado saber que o livro é uma espécie de reportagem. A obra anterior de Berendt, Meia noite no jardim do bem e do mal, foi um best seller de enorme sucesso que tratava de uma cidade no sul dos Estados, Savannah, de maneira similar àquela que foi utilizada para descrever Veneza em Cidade dos anjos caindo, com uma diferença fundamental: neste, ao contrário do que foi feito na obra anterior, todos os nomes utilizados são reais. Nas palavras de Berendt, “quando escrevi Meia-noite no jardim do bem e do mal, pensei que estaria fazendo um favor a algumas pessoas ao mudar os nomes delas para preservar sua privacidade. Mas quando o livro foi lançado, muitos dos personagens que haviam recebido pseudônimos me disseram que desejavam que eu tivesse usado seus verdadeiros nomes. Então, desta vez, decidi: nada de pseudônimos”.

Em Veneza o afluxo turístico é tão intenso que em certas épocas do ano os turistas estão na cidade em muito maior número que os habitantes locais – mas o interesse principal de Berendt está nas pessoas que moram lá. Para escrever Cidade dos anjos caindo (cujo nome é baseado em uma obra de restauração em uma igreja veneziana em que anjos do teto começaram a cair, o que fez com que os restauradores colocassem uma placa no local com os dizeres: “Cuidado, anjos caindo!”), o autor viveu em Veneza durante períodos de dois a três meses ao longo de nove anos, entrevistando habitantes e pesquisando locais e fatos.

São muitos os personagens e fatos reais que aparecem na obra. Um rico poeta e radialista homossexual deixa todos os seus bens para uma família de feirantes, cujos membros muito provavelmente não eram muito íntimos dele. Dois dirigentes de uma fundação americana de ajuda à cidade vêem-se numa acirrada disputa de egos. Um casal faz amizade com a amante do falecido poeta Ezra Pound, possivelmente para roubar-lhe documentos de grande valor. O mais importante vidreiro da cidade, um homem sério e calado, vê um de seus filhos traí-lo nos negócios. Em um jantar, todos ficam fascinados com a conversa sobre venenos para ratos de um grande fabricante do produto, que nunca conseguiu vendê-lo para a prefeitura local. Um grande palácio tem uma sala principal tão ricamente decorada que acaba dificultando a sua manutenção, o que faz os seus donos (um dos quais é um homem totalmente maníaco por viagens espaciais) quererem vendê-lo.

Mas a principal história do livro trata do incêndio de um dos principais símbolos da cidade, o Teatro Fenice: o autor descreve o que ocorreu dia da tragédia, as investigações para apurar os responsáveis e a reconstrução do local com grande precisão de detalhes – sem esconder as inúmeras suspeitas de corrupção que foram aparecendo no processo.

Extremamente bem escrito, Cidade dos anjos caindo é um livro de leitura agradável e fluida, que mostra uma Veneza meio decadente, com muitos habitantes cheios de manias – mas inegavelmente charmosa, claro.

(publicado na Revista Dominical do Jornal O Estado do Paraná, em 08 de outubro de 2006)

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