Cinco textos de Diderot
Literatura

Cinco textos de Diderot

27 de março de 2015 0

Situados entre a discussão filosófica, o ensaio e o conto, Os dois amigos de Bourbonne, Reunião de um pai com seus filhos, Sobre a inconsequência da opinião pública, Meu pai e eu e Carta a meu irmão são ótimos textos curtos de Denis Diderot.

Os dois amigos de Bourbonne (Les deux amis de Bourbonne) conta a história da profunda e bela amizade existente entre Felix e Olivier. O conto é uma sucessão intensa de desventuras, onde um amigo sucessivamente arrisca tudo, até mesmo a vida, para salvar a vida do outro, numa relação de amizade tão intensa que acaba ficando lendária. No final, após o desenrolar trágico de toda a história, surpreendentemente Diderot escreve um ensaio falando em três tipos possíveis de conto: um fantástico, à maneira de Homero; outro prazeroso, à maneira de La Fontaine; e, finalmente, o terceiro tipo, em que o autor quer escrever uma história real, que tem por objeto a verdade rigorosa. O autor, neste caso, quer interessar, tocar, emocionar, fazer as lagrimas correrem. Para atingir este objetivo sem cair no exagero e na irrealidade o autor deve colocar na história pequenas circunstancias tão ligadas à coisa, tão simples, tão naturais e, ao mesmo tempo, tão difíceis de imaginar, que o leitor acaba concluindo: que coisa, isto é verdade! Deste modo, o autor satisfará duas condições contraditórias, ou seja, ser ao mesmo tempo historiador e poeta, verdadeiro e mentiroso. Diderot, obviamente, fez com esta conclusão inesperada para dizer que Os dois amigos de Bourbonne é um conto do terceiro tipo.

Conversa de um pai com os seus filhos é um ótimo diálogo onde os nomes dos personagens são Meu Pai, Eu, Meu Irmão, Minha Irmã, O Frade, etc. (seria esta a descrição de um diálogo que aconteceu realmente?). Neste diálogo, diversas situações são apresentadas e debatidas – onde a lei está quase sempre contra o senso comum. Por exemplo, o Pai conta o caso em que ele ia cuidar do inventário de um homem rico que não deixara sucessores. Como não havia, aparentemente, nenhum testamento, todos os bens deste homem seriam deixados a parentes distantes e muito pobres, que já estavam na casa do falecido, esperando ansiosamente pelo espólio. A crise moral do Pai começa quando, quase por acaso e escondido num monte de papéis, ele encontra o testamento do tal homem rico – testamento este que deixava todos os bens para outra pessoa abastada, insensível e fria. O que faria o Pai? Fingiria que não tinha encontrado o testamento e passaria o espólio aos pobres? Ou faria a vontade do morto, passando seus bens para a outra pessoa rica? Na dúvida, o Pai pergunta a um padre respeitável, que recomenda que tudo se faça conforme a vontade do falecido. E é assim que ele faz, no que o autor (o personagem Eu) acha que o pai cometeu um erro, pois a vontade do morto era errada – além disto, ninguém saberia do testamento se o Pai o queimasse imediatamente. Outro caso debatido no diálogo é o do médico que cura um assassino notório – o autor, neste caso, achava que salvar o criminoso não faria nenhum bem à sociedade, no que o médico discorda profundamente. Outro debate ainda é o de um marido que cuidou de sua mulher, doente e mais rica que ele, durante dezoito anos. Após a morte dela, o marido “rouba” uma série de objetos de grande valor da esposa – os quais passariam a seus parentes consanguíneos, pelas leis da época. Este é mais um caso em que o autor acaba sendo favorável, por causa do bom senso, a ir contra a lei. Em outras palavras, para o autor o marido agira corretamente.

Se o tom do texto anterior é afetivo, familiar e sério, em Sobre a inconseqncia do julgamento público de nossas ações particulares (Sur l’inconséquence du jugement publique de nos actions particulières) o tom é mais cínico e debochado. Neste diálogo duas pessoas contam o porquê da má-fama do cavaleiro Desroches, que fora casado com uma viúva extremamente ciumenta, Mme de la Carlière. Esta faz aquele jurar fidelidade durante a cerimônia de casamento, mas uma situação política acaba facilitando as coisas para que Desroches a traia. Quando Mme de La Carlière descobre a falta do marido, reage, como era de se esperar, da pior maneira possível. Desroches faz de tudo para conseguir seu perdão, mas sem sucesso – a mulher permanece irredutível. De nada adiantam todas as suas inúmeras tentativas, cartas, humilhações e pedidos. Mme de La Carlière, por seu lado, amargurada, isola-se, empobrece – e perde a mãe, o irmão mais novo e o filho. Todas estas tragédias fazem com que aumente tremendamente a culpa de Desroches, segundo o dizer das outras pessoas. Era como se ele mesmo tivesse matado os familiares dela. Para a opinião pública ele nem mesmo pedira perdão a ele, o que não correspondia em absoluto à realidade. O que tinha sido um pequeno deslize passou a ser visto como uma falta de caráter gigantesca de Desroches, que tornou-se malvisto e mal falado por boa parte da sociedade – mas não durante muito tempo, é o que a conclusão esperançosa do diálogo sugere.

Meu pai e eu (Mon père et moi) é contada em primeira pessoa por uma filha, que acha que a riqueza pessoal é tudo. Seu pai, mesmo rico, acha que o mais importante é a caridade. É bastante interessante a teoria desenvolvida por ele para que os ricos distribuam o excesso de suas riquezas aos mais pobres, assim como é emocionante o final da história, quando um grande número de necessitados que a filha desconhecia choram junto ao caixão do pai. Ela nem tinha ideia do quão a sério seu pai levara suas próprias ideias a respeito de redistribuição de riqueza. A partir de então ela passa a agir da mesma maneira que ele agira durante a vida.

Carta a meu irmão (Lettre à mon frère) é uma carta real que o próprio Diderot enviara a seu irmão, padre que não aceitava em absoluto as ideias iluministas do filosofo descrente. O interessante na carta é que Diderot combate o radicalismo de seu irmão utilizando mensagens de amor e compreensão ditas por santos, ou contidas na própria Bíblia.

O que é extremamente importante nestes textos, como em quase todos aqueles escritos por Diderot, é a sua verve, a sua expressividade. Apesar de o estilo parecer um tanto caótico à primeira vista, a leitura é sempre fluida e ágil – não à toa, todos reconheciam que ele escrevia melhor quando não revisava, pois sua força expressiva era tão grande que ele encontrava o tom certo logo de chofre. Os personagens são descritos em tons vívidos – em poucas linhas já sentimos familiaridade com eles.

(texto escrito em agosto de 2002)

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