Pouco conhecido no Brasil, o escritor peruano Júlio Ramón Ribeyro (1929-1994) teve recentemente lançado seu livro “Prosas Apátridas” no Brasil pela Editora Rocco (160 páginas). Na introdução, o autor explica que o “apátridas” a que se refere o título não corresponde “às prosas de um apátrida ou de alguém que, sem sê-lo, se considera como tal”. Segundo Ribeyro, o livro, na verdade, é composto de “textos que não encontraram lugar” em seus livros já publicados e que erravam entre seus papéis, “sem destino nem função precisos”. Além disso, “trata-se de textos que não se emncaixam plenamente em nenhum gênero, pois não são poemas em prosa, nem páginas de um diário, nem anotações destinadas a um desenvolvimento posterior”. É por isto que o autor os considera “apátridas, pois carecem de um território próprio”.
“Prosas apátridas” é composto por 200 pequenos textos em que o autor fala da vida de um peruano em Paris – onde passou boa parte da vida -, da morte, da família, da literatura, dos passantes na rua, dos relacionamentos.
Segundo Ribeyro, “conhecer o corpo de uma mulher é uma tarefa tão lenta e tão louvável como aprender uma língua morta. A cada noite é acrescentada uma nova comarca a nosso prazer e um novo símbolo a nosso já abundante vocabulário. Mas sempre restarão mistérios por revelar”.
Um tema caro ao autor é a diferença entre a erudição e a cultura: “um homem que conhece a dedo todo o teatro de Beaumarchais é um erudito, mas culto é aquele que, tendo lido apenas ‘As bodas de Fígaro’, percebe a relação que existe entre essa obra e a Revolução Francesa, ou entre seu autor e os intelectuais de nossa época”. Comentando sobre um autor latino-americano cujo nome não é citado, ele conclui, ferino: “a cultura não é um depósito de autores lidos, e sim uma forma de raciocinar. Um homem culto que cita muito é um ignorante. ”
Este seu amor pela cultura, infelizmente, é misturado com um indisfarçável esnobismo: “os dois faxineiros franceses da estação do metrô, com seus macacões azuis, falando em gíria, ou melhor, grunhindo sobre seu trabalho. (…) Inútil perguntar-lhes o que opinam sobre a Guerra do Vietnã ou sobre a energia nuclear. São justamente os tipos que fazem fracassar as pesquisas de opinião pública”. Sua conclusão não poderia ser mais arrogante: “é verdade que 1789 produziu a burguesia mais inteligente do mundo, mas ao mesmo tempo milhares de salsicheiros, de zeladores e de faxineiros de metrô”.
O tipo do livro que é “Prosas Apátridas” me fazia lembrar, durante a leitura, a todo o tempo dos Ensaios de Montaigne, sobre os quais já comentei no meu site. Não só o estilo dos dois é semelhante; a melancolia do filósofo francês do século XVI também é: “Sêneca, Manrique, Montaigne, Quevedo, Heidegger, para citar de uma verdade essencial, que com frequência esquecemos: a presença da morte em nossa vida. Citarei só Montaigne, pois resume o sentimento de todos na forma mais clássica e ao mesmo termo mais moderna: ‘Desde o dia do nosso nascimento, nos encaminhamos para a morte… Tudo o que você viver será roubado da vida, e às custas dela… Você está na morte enquanto estiver na vida’”.
Alguns trechos de “Prosas Apátridas” são de pura sabedoria: “os anos nos afastam da infância sem levar-nos necessariamente à maturidade. Um dos poucos méritos que admito em um autor como Gombrowicz é ter insistido, até o grotesco, no destino imaturo do homem. ”
A originalidade do pensamento de Ribeyro pode ser encontrada por exemplo no trecho a seguir, em que ele fala de objetos “irrecuperáveis”, que “não transigem com nada e que, como castigo por seu espírito subversivo, são confinados no fundo de uma gaveta ou na escuridão de um porão. Objetos terríveis, condenados, que devem estar tramando em silêncio alguma vingança atroz. ”
Suas observações sobre desconhecidos na rua são originais: “seu rosto tem a expressão do homem que acaba de escapar de um terrível acidente, de um naufrágio, no qual a morte teve tempo de lhe imprimir sua marca de propriedade. ”
Melancólicos, ferinos, líricos, arrogantes ou pessimistas, mas sempre instigantes, os 200 textos curtos de “Prosas Apátridas” podem até apresentar momentos desagradáveis aqui e ali. Mas o livro como um todo é muito interessante. Espero que os trechos que escolhi, acima, tenham conseguido passar esta impressão.
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