Livros que minha mãe amava: 5. “O Gênio e a Deusa”, de Aldous Huxley
Literatura

Livros que minha mãe amava: 5. “O Gênio e a Deusa”, de Aldous Huxley

10 de março de 2024 0

Se esta série de livros que minha mãe amava tivesse apenas um exemplar, este certamente seria “O Gênio e a Deusa” (Civilização Brasileira, 113 páginas, tradução de João Guilherme Linke, publicado originalmente em 1955), o preferido dela.

Como eu, minha mãe não costumava reler livros, mas tinha algumas exceções – as minhas eu comentei aqui pouco tempo atrás, e a única exceção que eu sei dela era (devia ter mais algumas, mas eu não lembro) era este “O Gênio e a Deusa”.

Ela me dizia que tinha lido mais de dez vezes este romance, e que às vezes o relia quando lhe dava na telha. Alguns trechos da obra ela repetia em algumas ocasiões, e este aqui, sublinhado na edição dela, é o que eu mais lembro de tê-la ouvido recitar:

“’A gente acaba se acostumando’ – repetiu. Cinquenta por cento das Consolações da Filosofia em cinco palavras. E os outros cinquenta podem ser expressos em seis: irmão, quem está morto, está morto. Ou, se se prefere, em sete: irmão, quem está morto, não está morto.”

Eu não achava esta citação nada demais, no início. Até que um belo dia percebi que ela falava, de modo descontraído e profundo ao mesmo tempo, da vida após a morte – provavelmente a maior questão da humanidade.

Outro trecho que ela citava é famoso início do livro:

“O mal da ficção – disse John Rivers – é que ela faz sentido demais. A realidade nunca faz sentido.

– Nunca? – contestei.

– Talvez do ponto de vista de Deus – concedeu ele. – Do nosso, nunca. A ficção tem unidade, a ficção tem estilo. A realidade não possui uma coisa nem outra.”

A edição da minha mãe está cheia de trechos sublinhados, e lê-los, claro, me faz lembrar dela.

O jeito como o “O Gênio e a Deusa” é contado é – apesar de não original – bastante interessante. O livro todo é uma conversa na noite de Natal, à noite, entre o narrador e John Rivers, um físico que, trinta anos antes, tinha morado na casa da família do Dr. Maartens (o “gênio” do título), um físico vencedor do Prêmio Nobel, casado com Katy (a “deusa”), e com dois filhos, Timmy e Ruth. Dr. Maartens, apesar de genial na ciência, é completamente infantil na vida pessoal (será que é a inspiração para o personagem Michael Beard, do ótimo “Solar”, de Ian McEwan, sobre o qual comentei aqui?), enquanto a bela Katy é uma espécie de “esteio da casa” e Ruth é uma adolescente problemática. Os conflitos pessoais entre John Rivers e os Maartens é o tema principal do livro.

Eu já tinha lido “O Gênio e a Deusa” na adolescência, mas não tinha entendido muito. Na releitura, agora, notei que o livro é simplesmente uma obra-prima, e merece todo o amor que minha mãe tinha por ele.

Mas não vou deixar de acabar este texto sem transcrever o último parágrafo do livro, que minha mãe sublinhou, e dá uma pequena mostra do humor ácido da minha mãe:

“Guie com cuidado – recomendou enquanto abria a porta. – Este é um país cristão e hoje é o aniversário do Salvador. Praticamente todo mundo que você encontrar estará bêbado.”

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