Rápidos comentários sobre livros lidos – 3
Literatura

Rápidos comentários sobre livros lidos – 3

30 de maio de 2015 0

É pena que eu não tenha mais o exemplar da Enciclopédia Abril cujo verbete sobre Georg Trakl me fez ficar apaixonado por este poeta austríaco, já há uns trinta anos. Ele falava de anjos azuis, ouro, podridão e morte. Era de uma beleza tão extrema que eu não sabia direito como lidar com o assunto – Heidegger dizia que adorava a poesia de Trakl, mas não a entendia. Lembro que na época procurei algum livro de Trakl nas livrarias e simplesmente não se achava nada – e isto não mudou tanto assim, se tratando de Trakl em português. De todo modo, algum tempo mais tarde achei numa livraria – na Mal. Deodoro, ainda lembro bem disso – um livro português que, não sei bem por que, não comprei na hora. Voltei na livraria mais tarde e o livro já tinha ido embora. Agora, graças à Estante Virtual, comprei “Poemas – Antologia, versão portuguesa e introdução de Paulo Quintela”, um livro português publicado em 1980 pela “O oiro do dia/Porto”. Não tem muito o que comentar sobre um livro em que a toda hora lemos coisas como “Silencioso sobre o Calvário / abrem-se os olhos dourados de Deus”.

Primeiro livro da sua trilogia autobiográfica “Cenas da vida na província”, “Infância” (Companhia das Letras – o terceiro, “Summertime”, já foi comentado aqui),do Prêmio Nobel de 2003, o sul-aficano J.M.Coetzee, é extraordinário. O livro é contado em terceira pessoa, e fala da infância e início da adolescência do autor. Vindo de uma família não religiosa, ele não sabe se é cristão (protestante, na verdade), católico ou judeu. Escolhe ser católico, mas não consegue justificar por que não fez primeira comunhão. É um excelente aluno, e vai melhor em matemática do que em história já que detesta decorar. Tem uma mãe que o adora, e uma relação distante com o pai, que detesta. John (é assim que ele é chamado no livro) é um menino com permanente sensação de deslocamento, que não parece se sentir à vontade praticamente em lugar nenhum. Coetzee conta a própria vida como se fosse outra pessoa.

Por causa de “Freedom” (Thorndike Press), Jonathan Franzen acabou sendo um dos únicos escritores americanos a ser capa da revista Time. O livro, best-seller recomendado inclusive por Oprah Winfrey e Barack Obama, realmente merece todo o barulho que causou. O romance conta três décadas na vida da família Berglund – o casal Walter e Patty e seus dois filhos – e de um músico, Richard Katz, que sempre esteve na órbita do casal. Os personagens são descritos com grande maestria, e o leitor acaba sentindo que os conhece “de verdade”. Acontecimentos históricos – como a segunda guerra do Golfo – e preocupações com a ecologia também têm papel importante no transcorrer da obra. Franzen quer retomar a grande tradição romanesca realista do século XIX – e podemos dizer que ele atingiu com louvores o seu objetivo.

“Medo e delírio em Las Vegas” (L&PM) é a obra mais famosa do criador do jornalismo gonzo – em que o jornalista também faz parte da notícia -, o americano Hunter Thompson. O livro é um delírio monumental: o autor e seu advogado, um gigante samoano de 150 quilos, vão a Las Vegas cobrir uma corrida de motos, e não veem praticamente nada. Apenas se entopem com todas as drogas possíveis. Depois eles vão a um encontro de promotores anti-drogas (!). E continuam detonando. Por que o livro fascina tanto, mesmo com personagens principais praticando tanta insanidade? Será que é por que Hunter Thompson escreve bem demais? Ou por que o livro descreve parte do que foi a loucura dos anos 70 nos Estados Unidos, quando grande parte da população estava agindo de maneira desvairada? Não sei. Sei que li o livro praticamente de uma sentada, espantado e admirado.

Descobri sobre “Cartas chilenas” (Companhia das Letras) lendo a respeito no clássico “Formação da Literatura Brasileira”, de Antonio Candido. Na primeira edição do “Formação” ainda não se tinha certeza de quem era o autor, que hoje é reconhecido como Tomás Antonio Gonzaga, que fez a obra pouco antes da Inconfidência Mineira, em 1789. O livro é composto por 13 “cartas” – na verdade poemas em versos brancos – em que o autor, supostamente um tal de Critilo, critica o governador chileno “Fanfarrão Minésio”. Na verdade, o objetivo do autor das “Cartas chilenas” era criticar Luís da Cunha Meneses, governador de Minas na época. As denúncias são graves. Segundo “Critilo”, “Fanfarrão Minésio” ajudava os amigos, mesmo quando iam contra a lei, e punia as demais pessoas de modo cruel e desumano. Gastava dinheiro de ajuda aos pobres e à Igreja com festas onde o comportamento padrão era imoral. Tentou construir uma obra faraônica, com o sacrifício e o sangue do povo. Um verdadeiro déspota cruel. As descrições são vívidas e as denúncias extremamente bem elaboradas. Não à toa “Cartas chilenas” foi sempre – e continua sendo – objeto de tantos estudos sérios em nosso país.

“Journal d’un curé de campagne” é considerado por muitos a obra-prima do escritor católico francês Georges Bernanos. O livro conta a história de um padre de uma cidadezinha francesa, que se vê às voltas com a mediocridade e a mesquinhez dos paroquianos – particularmente dos mais ricos – e com seus próprios problemas de saúde. Boa parte da obra é composta por diálogos entre o padre e outras pessoas, do clero e fora dele. Muitos assuntos são debatidos, como a presença da Igreja na história, a atuação do mal no dia-a-dia, e a força ou a fraqueza da fé. “Journal d’un curé de campagne” é um livro de leitura particularmente difícil, devido à complexidade narrativa, mas de leitura altamente recompensadora.

O personagem principal de “Solar”, de Ian McEwan (Comapanhia das Letras), o físico Prêmio Nobel Michael Beard, padece um pouco da falta de humanidade e de empatia de outros personagens de livros dele, ponto já comentado aqui. Beard é um mau caráter rematado: roubou ideias de um físico mais jovem de sua equipe, casou várias vezes – tratando suas mulheres como simples objetos sexuais, as traindo de maneira sistemática -, não tem maior respeito pelos outros seres humanos, bebe demais e vive quase que exclusivamente dos louros do passado -fazendo conferências pelo mundo graças ao Prêmio Nobel recebido na juventude. Além disso, tem problemas de saúde e de excesso de peso. É um sujeito intelectualmente genial, mas de modo geral é uma figura tão estapafúrdia que chega a ser cômica. Ian McEwan debate pontos interessantes no romance, como: o que é mais difícil, ser um físico ou um literato? Por que a genialidade intelectual não tem nada a ver com a maturidade emocional? Além disso, a obra tem trechos extremamente cômicos (parece que McEwan não gostou que tenham achado seu livro hilário, mas enfim), o que me faz recomendar fortemente a leitura de “Solar” – mesmo com o porém levantado lá em cima.

Explícito é “A casa dos budas ditosos”, de João Ubaldo Ribeiro (Objetiva). O livro usa uma antiga técnica literária, que consiste em dizer que o autor recebeu a história pronta de outra pessoa, que pode ou não querer passar por anônima. No presente caso, João Ubaldo Ribeiro “recebe” umas fitas cassete de CLB, uma mulher de 68 anos que conta com grande número de detalhes sua vida sexual libertina – ela se considera “pansexual”, e fez sexo – muito sexo – com mulheres, homens e parentes próximos, dos mais diversos modos e nas mais diversas ocasiões. Quase sempre na maior alegria – apenas o relacionamento com um tio, que acabou pagando seu estudos, não foi plenamente satisfatório. O estilo de João Ubaldo Ribeiro é delicioso e o livro, além de explosivamente sexual, é extremamente divertdo.

(texto publicado no blog do Mondo Bacana em 28 de março de 2011)

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