Uma temporada de facões em Ruanda
História

Uma temporada de facões em Ruanda

18 de maio de 2015 0

Já em 1931 foi introduzida, em Ruanda, a carteira de identidade com menção à etnia – naquele tempo o país africano era uma colônia belga, e os belgas dividiam o poder com monarcas da etnia tútsi. Em 1959 ocorre a morte do último grande rei tútsi, Mutara Rudahigwa, que é seguida por uma série de revoltas hútus que provocam o êxodo de centenas de milhares de membros da etnia rival. Em 1961 os hútus ganham as primeiras eleições legislativas e, no ano seguinte, Ruanda alcança a independência. Em 1973, o general Juvénal Habyarimana, hútu, assume o poder num golpe de estado e a coisa começou a ficar realmente feia para os tútsis: a propaganda oficial chamava estes de “baratas”, ou também de “pretensiosos e arrogantes” – já que os tútsis são em média mais altos e mais esbeltos que os hútus. A guerra civil entre as duas etnias vizinhas era iminente. A situação em 1994 era totalmente insustentável e o genocídio ruandês, que já estava planejado meses antes, teve como estopim o assassinato, em 6 de abril, do presidente Juvénal Habyarimana nos céus do aeroporto de Kigali, a capital de Ruanda, pelos guerrilheiros tútsis da FPR, a Frente Patriótica de Ruanda.

Uma das coisas impressionantes do genocídio de 1994 é que os hútus matavam alucinadamente os tútsis enquanto a FPR (cujos membros, sintomaticamente, são chamados de “invencíveis”) fazia sua grande ofensiva: em 4 de julho, quatro meses depois do início da matança portanto, os guerrilheiros tútsis assumem Kigali – e onze dias mais tarde se inicia a fuga de praticamente dois milhões de hútus para os países vizinhos.

Mas, obviamente, muito mais espantosa do que esta vitória tútsi foi o próprio genocídio: em apenas doze semanas depois daquele fatídico 6 de abril, 800 mil tútsis foram mortos. Nem mesmo no auge do Holocausto, em 1942, o desempenho dos nazistas na área formada pela Alemanha e pelos quinze países ocupados foi tão letal. Esta eficiência tenebrosa foi obtida porque os hútus matavam seus vizinhos, seus conhecidos próximos, seus companheiros em times de futebol: literalmente, todos os tútsis estavam condenados à morte – por mais que estes falassem a mesma língua que os hútus, morassem nas mesmas ruas e professassem a mesma religião católica. Impelidos e liderados pelas interahmwe – milícias extremistas criadas pelo clã Habyarimana – e pelas rádios de propaganda, e armados em sua maioria apenas com facões, os hútus matavam suas vítimas tútsis – homens, mulheres e crianças – e saqueavam as casas das vítimas.

Recentemente foram lançados por aqui um livro e um filme que contam um pouco do que aconteceu no genocídio ruandês: Uma temporada de facões, de Jean Hatzfeld (Companhia das Letras, 284 páginas), baseia-se numa série de depoimentos de dez assassinos hútus, participantes de um mesmo grupo que agiu nas colinas de Nyamata em 1994, enquanto que Hotel Ruanda, produção inglesa/italiana/sul-africana dirigida por Terry George, conta a história real de um gerente  de hotel da etnia hútu que salva 1200 vidas de tútsis.

O primeiro livro que Jean Hatzfeld lançou sobre o massacre ruandês nas colinas da Nyamata foi Dans le nu de la vie (que ainda não foi lançado por aqui), que contava os fatos a partir de depoimentos dos sobreviventes tútsis do massacre nas colinas de Nyamata, em Ruanda. Agora, em Uma temporada de facões, a perspectiva se inverte: são os perpetradores do genocídio na mesma região que contam a sua visão dos acontecimentos. O fato deles serem todos de um mesmo grupo de amigos e estarem, quando das entrevistas, presos na mesma cadeia, ajudou muito nas entrevistas: isto porque segundo o autor, perpetradores de genocídios costumam fugir do assunto ou dizer que apenas seguiam ordens quando interrogados sobre seus atos nas matanças. Já no caso dos assassinos (que, em sua quase totalidade, a não ser naquelas semanas do genocídio, sempre tiveram vidas comuns de pais de família) de Uma temporada de facões o exemplo de confissão de alguns dos membros do grupo acabou por encorajar os demais a também contarem a verdade – ou, pelo menos, parte dela.

E é a partir dos depoimentos destes homens que ficamos sabendo que já de há muito os hútus das colinas de Nyamata tinham suas diferenças com os tútsis da mesma região: além da propaganda oficial racista do presidente Habyarimana, os tútsis, em sua quase totalidade pequenos criadores de gado, eram costumeiramente acusados de jogar seus bois para destruir as plantações dos agricultores hútus. De todo o modo, estas diferenças não faziam prever o que ocorreria em 1994 – até porque as duas etnias viviam em relativa paz, dividindo muitas vezes, por exemplo, bebidas nos cabarés, assentos nas igrejas e nos estádios de futebol (a equipe local deste esporte, inclusive, era composta quase que na mesma proporção por hútus e tútsis… o que não impediu que os jogadores hútus assassinassem os tútsis do mesmo time durante o genocídio).

Quando chegou o dia do início da matança, os interahmwe chamaram os homens hútus para o campo de futebol, que era o centro das operações na região. A cada perpetrador foi dado, basicamente, um facão – note-se que os hútus, agricultores, tinham grande destreza no uso deste equipamento – e a seguinte ordem: “mate todos os tútsis que puder”. Não havia outra ordem.

E assim, depois de um café da manhã com bastante carne, muito mais reforçado que o normal – a região é pobre -, os homens hútus iam para os pântanos, ou para onde fosse necessário, matar seus “inimigos” tútsis. O método de matar era basicamente “cortar” a vítima, ou seja, fazer um corte profundo no pescoço. No final da tarde os interahmwe chamavam os perpetradores de novo para o estádio de futebol: era quando acabavam os “trabalhos” (exatamente como se este fosse um “trabalho” como outro qualquer). Aos hútus também era permitido roubar tudo o que fosse possível das propriedade de suas vítimas.

A relação dos assassinos entrevistados por Jean Hatzfeld com o seu passado genocida varia muito de indivíduo para indivíduo: alguns têm pesadelos até hoje, outros ainda tremem ao lembrar do “olhar terrível” que os tútsis lhes lançavam pouco antes de morrer, alguns pedem perdão a Deus ou aos sobreviventes. Mas o remorso não é tão presente na mente de outros deles, que até hoje se lamentam da oportunidade que perderam quando da derrota dos hútus para a FPR. O que mais impressiona o leitor, entretanto, é que quase todos os assassinos recordam daquela época como um tempo de comida farta, de muita alegria e bebida, e de muitos despojos de guerra. Na época, eles não achavam que estavam fazendo algo errado, não mesmo.

Uma temporada de facões é um livro extraordinário. Além dos depoimentos impressionantes que Jean Hatzfeld consegue obter tanto dos assassinos quanto de algumas vítimas sobreviventes, em muitos capítulos o autor brinda o leitor com comentários de aguda penetração e bom senso. Outro aspecto positivo da obra é a absoluta falta de qualquer tipo de racismo de Hatzfeld (branco, francês, mas nascido em Madagascar) com relação aos negros que são assunto de seu livro. Nenhum comentário pejorativo quanto à miséria deles, nenhuma absurda teoria de inferioridade racial. Muito pelo contrário aliás, o genocídio perpetrado pelos arianos alemães na Segunda Guerra Mundial contra ciganos e judeus serve como termo de comparação freqüente em Uma temporada de facões.

Mas pensando bem, depois dos muitas vezes sofisticados depoimentos sobre assuntos como perdão e redenção que Hatzfeld consegue obter tanto de assassinos quanto de vítimas, não tinha como abrir espaço para o racismo mesmo. Afinal de contas, pode-se dizer, de certa forma, que o genocídio está em outro plano da existência (ver mais detalhes abaixo).

Hotel Ruanda é uma espécie de Lista de Schindler dos massacres de Ruanda. Ele conta a história real de Paul Rusesabagina (vivido com maestria por Don Cheadle), um gerente de hotel de luxo em Kigali que é casado com uma tútsi. Quando começa o genocídio, vários parentes tútsis de sua mulher começam a pedir abrigo para ele. No início ele consegue salvá-los com subornos aos hútus e, com o passar dos dias, mais e mais fugitivos do massacre vêm pedir abrigo no hotel – que vira uma grande campo de refugiados tútsis. Para salvar mais de 1200 tútsis e sua própria vida (como se pode imaginar, hútus contrários ao massacre não eram exatamente bem aceitos entre os perpetradores: o livro Uma temporada de facões inclusive mostra exemplos trágicos a respeito), Rusesabagina conta com uma enorme coragem e esperteza – mas uma não menor dose de sorte.

Embora o filme possa ser criticado por contar uma história edificante no meio de um massacre horrendo, Hotel Ruanda impressiona por vários motivos: ele é bastante fiel à atmosfera violentíssima do genocídio; mostra com precisão o poder das rádios hútus nos massacres; e, por último mas não menos importante, descreve com agudez a atitude vil dos governos ocidentais na ocasião – são inesquecíveis e horripilantes as cenas em que amigos tútsis e brancos são obrigados a se separar, já que o Ocidente enviou para fora de Ruanda apenas as pessoas de pele clara (em Uma temporada de facões, aliás, também é descrita a dramática a separação forçada de freiras brancas e tútsis em Nyamata – sendo que nenhuma das últimas sobreviveu para contar a história).

Nos informamos a respeito de genocídios, conforme escreveu Susan Sontag na apresentação de Uma temporada de facões, basicamente num esforço de entender o que aconteceu. Mas isto, penso eu, não é assim tão fácil.

Conforme escreve Jean Hatzfeld em seu livro, confundir crimes de guerra (como aqueles do Iraque ou da Bósnia) “mesmo estes quando tendem, em sua loucura, a subjugar uma comunidade civil”, com um genocídio, que é “um projeto explícito e organizado de extermínio, é um mal-entendido intelectual e político, sintomático de nossa cultura do sensacionalismo”. Conforme acrescenta Christine Nyiransabimana, uma das vítimas tútsis sobreviventes entrevistadas pelo autor de Uma temporada de facões, “há uma guerra quando as autoridades querem derrubar outras autoridades para instalar-se no lugar delas. Um genocídio é uma etnia que quer enterrar outra etnia. O genocídio ultrapassa a guerra, porque a intenção dura para sempre, mesmo se não for coroada de sucesso.”

E isto, definitivamente, não é fácil de se entender. Como diz Sylvie, outra sobrevivente tútsi entrevistada por Hatzfeld, “se nos detemos demais no medo do genocídio, perdemos a esperança. Perdemos o que conseguimos salvar da vida. Arriscamo-nos a ser contaminados por outra loucura. Quando penso no genocídio, num momento calmo, reflito para saber onde encaixá-lo na existência, mas não acho lugar nenhum. Quero dizer que isto não é mais humano.”

(texto publicado em outubro de 2005 no extinto site B*Scene)

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