Percebi um certo menosprezo contra a música clássica em alguns textos que li recentemente em sites indies . Pode ser que eu seja meio ingênuo, mas penso que isto é um erro. Nada contra quem não gosta de música erudita (muito pelo contrário), mas é uma atitude lamentável tentar fechar as portas para possíveis futuros amantes e conhecedores do estilo – ainda mais quando se sabe que a quantidade de discos clássicos vendidos é muitas vezes menor que a de música pop.
Para me contrapor e eu poderia simplesmente apelar, discorrendo sobre a eternidade e a complexidade da música erudita. Mas não.
A verdade é que existe uma enorme beleza na melhor música clássica. E é por isto que ela ainda é ouvida e admirada – e não por pedantismo da parte dos amantes do estilo, como algum detrator (que normalmente não entende nada do assunto) possa imaginar. Certas canções de Schubert, por exemplo, são tão pop e têm melodias tão ou mais belas que Beatles ou Stone Roses. Beethoven pode nos conduzir a sensações totalmente inauditas. Mahler pode nos levar a estados de devaneio da mesma forma que o mais recente disco do Massive Attack. Brahms nos faz compreender a beleza que pode existir no complexo e/ou no inesperado. Schumann tem certos temas de um lirismo arrebatador. E tem Bach.
Bach, meus amigos, é um assombro.
Dia destes li um excelente ensaio de Mario Vargas Llosa, que dizia que a obra literária de Victor Hugo era perfeitamente comparável a um oceano: “um mar imenso, às vezes calmo, às vezes agitado por tormentas avassaladoras, um oceano habitado por formosos bandos de golfinhos e por crustáceos sórdidos e enguias elétricas, um infinito mare magnum de águas encrespadas, onde convivem o que há de melhor e pior – de mais belo e mais feio – entre as criações humanas”. Creio que este epíteto pode ser utilizado para descrever a obra de Bach – mas com um senão: neste imenso oceano que é a obra do grande compositor alemão não há praticamente nada que se possa dizer: “isto é feio” ou “isto está entre o que há de pior da criação humana”.
Bach é um assombro.
É claro que só se podemos ter a exata dimensão da beleza do alemão – por muitos considerado o melhor compositor de todos os tempos – ouvindo suas obras. Por outro lado, pode-se ter uma bela idéia da imensidão do que ele criou acessando o J.S.Bach HomePage. Este site, desculpem a insistência, é umassombro.
A página inicial do site é simples. Tem um link para a biografia, retratos e literatura; outros links são para a obra completa do compositor; outros para gravações recomendadas, e assim por diante. Embora todas as partes do site sejam bastante completas, é nos links referentes à obra do compositor que o J.S.Bach HomePage se mostra realmente extraordinário. Para cada uma das 1200 obras de Bach, ou BWV, existe um link – e, para cada um destes, pode-se ir a outros links, cada um detalhando (com comentários especializados, data, instrumentistas, etc) uma diferente execução da mesma obra. É de perder o fôlego.
Na página inicial do site há um link para o Projeto Cantatas (The Cantatas Project), que é um projeto ambicioso do holandês Jan Koster que visa publicar, no original alemão e em inglês – com comentários – os textos de todas as cantatas de Bach. O criador deste projeto visava, a partir do seu início em 1998, “já que não trabalhava exclusivamente no assunto”, inserir cerca de 20 cantatas por ano neste site. Mas problemas de trabalho e de saúde o tem impedido de ir tão rápido quanto gostaria, apesar das “valiosas colaborações de pessoas de todas as partes do mundo” que o projeto tem recebido.
Falando nisso, a monumental coleção das mais de 200 cantatas existentes até hoje (acredita-se que Bach tenha composto 300 no total) é considerada por muitos – entre os quais este que vos escreve – o melhor da criação bachiana. As cantatas religiosas serviam para o ofício luterano e foram criadas, cada uma delas, para serem executadas num domingo ou festividade religiosa específicos, enquanto que as profanas (em torno de 50 no total) foram elaboradas para comemorar ocasiões especiais – como casamentos, aniversários de nascimento, homenagens a personalidades, ou para cerimônias na Universidade de Leipzig.
Como uma modesta forma de homenagear todos aqueles que lutam para manter viva a obra de Bach nos dias de hoje, segue abaixo uma pequena resenha de um dos meus discos preferidos de cantatas.
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Cantatas BWV 46-48 com o Bach-Ensemble, com a regência de Helmuth Rilling
Este disco faz parte da edição da obra completa de Bach, pela gravadora hänssler Classic. A soprano é Arleen Augér; as contraltos são Hellen Watts (BWV 46) e Marga Hoeffgen (BWV 48); os tenores são Adalbert Kraus (BWV 46) e Aldo Baldin (BWV 48); e os baixos são Wolfgang Schöne (BWV 46) e Phillipe Huttenlocher (BWV 47). As cantatas BWV 46, 47 e 48 foram criadas especificamente para serem executadas, respectivamente, nos dias 1ode agosto de 1723; 17o e 19o domingo após a Trindade. As letras das composições são baseadas na Bíblia ou em hinos religiosos protestantes.
Mais detalhes sobre o disco abaixo.
Cantata BWV 46:
1 – Schauet doch und sehet: um coro em duas partes bem distintas. Na primeira, as vozes femininas e masculinas cantam lentamente, com grande lirismo, a frase Shauet doch und sehet, ob irgendein Schmerz sei wie mein Schmerz, der mich troffen hat. Na segunda, a frase Denn der Herr hat mich voll Jammers gemacht am Tage seines grimmingen Zorns, é cantada também em contraponto por todo o coro, mas agora com grande energia. A primeira parte é um dos mais belos corais de Bach.
2 – So klage, du zertörte Gotesstadt: lento recitativo para tenor, acompanhado por um contínuo de oito instrumentos. Bonito, mas normal para os padrões de Bach.
3 – Dein Wetter zog sich auf von weiten: ária para baixo cantada em andamento rápido. Tem alguns belos momentos, mas é cansativa de maneira geral.
4 – Doch bildet euch, o Sünder, ja nicht ein: recitativo para contralto, com o contínuo formado por violoncelo e órgão. Não chega a ter grandes atrativos musicais.
5 – Doch Jesus will auch bei der Strafe: belíssima ária para contralto, acompanhada apenas por duas flautas doces e dois oboés da caccia. A linda melodia e o contraponto entre os instrumentos de sopro são os pontos altos.
6 – O Grober Gott von Treu: coral acompanhado por oito instrumentos. A massa vocal em uníssono dialoga belissimamente com as duas flautas doce solistas.
Cantata BWV 47:
7 – Wer sich selbst erhöhet: belíssimo e imponente coro. Na maior parte do tempo, a frase Wer sich selbst erhöhet é cantada sucessivamente pelas vozes masculinas e femininas, resultando num lindo efeito.
8 – Wer ein wahrer Christ will heiben: nesta ária para soprano o órgão é o instrumento solista, enquanto que o baixo contínuo é formado por um cello e um cravo. Se por um lado a voz é dramática à maneira das grandes árias de Bach, por outro o as notas agudas do órgão dão um belo colorido à peça.
9 – Der Mensh ist Kot, Stank, Asch und Erde: recitativo para baixo mais dramático que o habitual – possivelmente pelo fato de oito instrumentos acompanharem a voz, e não um ou dois, como o usual em Bach.
10 – Jesu, beuge doch mein Herze: bonita ária para baixo, que inicia de forma singela e vai ficando mais dramática à medida que se desenvolve. É interessante também diálogo estabelecido entre os dois oboés e os dois violinos.
11 – Der zeitclichen Ehrn will ich gern entbehrn: belo coral, mas “normal” – em se tratando de Bach.
Cantata BWV 48:
12 – Ich elender Menshch: coro belíssimo, com um tema arrebatador. Bach em um de seus (muitos) grandes momentos.
13 – O Schmerz, o Elend, so mich trifft: recitativo para contralto com certa intensidade dramática, mas não muito interessante musicalmente.
14 – Solls ja so sein, dab Straf und Pein: coral curto, em tudo semelhante àqueles que costumam encerrar as cantatas de Bach.
15 – Ach, lege das Sodom der sündlichen Glieder: curta ária para contralto de qualidade menor que o usual em Bach, e com um tema um tanto repetitivo.
16 – Hier aber tut des Heilands Hand: recitativo para tenor acompanhado por um contínuo formado por violoncelo, contrabaixo e cravo.
17 – Vergibt mir Jesus meine Sünden: ária para tenor. Tentamos manter a sobriedade quando falamos de Johann Sebastian Bach, mas tem horas que é difícil – esta peça, por exemplo, é tão linda que palavras ficam inúteis.
18 – Herr Jesu Christ, einiger Trost: depois da ária anterior, este belíssimo coral acaba servindo como uma espécie de volta à realidade – o que não é ruim, acreditem.
(texto escrito em 2003)
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