Arrependimentos sobre meu velho roupão ou Conselhos àqueles que têm mais gosto que riqueza, por Denis Diderot
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Arrependimentos sobre meu velho roupão ou Conselhos àqueles que têm mais gosto que riqueza, por Denis Diderot

14 de abril de 2015 0

(texto traduzido em 2003)

Por que não o guardei? Ele era feito para mim, eu era feito para ele. Ele se moldava a todas as dobras do meu corpo sem incomodá-lo; eu era pitoresco e belo. Não havia nenhum desejo ao qual a sua indulgência não se prestasse; isto porque a indigência é quase sempre extraoficial. Um livro estava coberto de poeira, e um de seus panos se oferecia para limpá-lo. A tinta se espessava e se recusava a caminhar na minha pena, e ele apresentava seu flanco. Via-se nele, traçado em longos raios negros, os frequentes trabalhos que ele me tinha feito. Esses raios longos anunciavam o literato, o escritor, o homem que trabalha. Hoje em dia tenho o ar de uma vagabundo. Não se sabe quem sou.

Sob o seu abrigo, eu não temia nem a falta de jeito de um criado, nem a minha, nem os estilhaços do fogo, nem o derramamento da água. Eu era o senhor absoluto do meu velho roupão; tornei-me escravo do novo. O dragão que vigiava a lã de ouro não era mais inquieto que eu. A preocupação me cerca, me domina.

O velho apaixonado que se entrega, pés e punhos amarrados, aos caprichos, à mercê de uma jovem louca, diz desde a manhã até a noite: “Onde está minha boa, minha velha governanta? Que demônio me cegou no dia em que eu a expulsei por esta aqui?” Depois ele chora, ele suspira.

Eu não choro, eu não suspiro; mas a cada instante digo: maldito seja aquele que inventou a arte de dar um preço ao tecido comum ao tingi-lo de escarlate! Maldita seja a preciosa vestimenta que venero! Onde está meu antigo, meu cômodo trapo? Meus amigos, guardem seus velhos amigos. Meus amigos, temam a chegada da riqueza. Que o meu exemplo os instrua. A pobreza tem suas franquezas, a riqueza tem seus constrangimentos.

Ó Diógenes! Se você visse o seu discípulo sob o faustoso manto de Aristipo, como você riria! Ó Aristipo, este manto faustoso foi pago com um bom número de baixezas. Que comparação entre a sua vida covarde, rasteira, afeminada, e a vida livre e sólida do cínico andrajoso! Eu deixei o barril onde reinava para ser submisso a um tirano.

Isso não é tudo, meu amigo. Escute os efeitos nocivos do luxo, as consequências de um luxo importante.

Meu velho roupão era um entre os outros velhos cacos que me cercavam. Uma cadeira de palha, uma mesa de madeira, uma tapeçaria de Bergame, uma tábua de pinheiro que sustentava alguns livros, algumas estampas enegrecidas pelo tempo, sem moldura, pregadas pelos cantos sobre esta tapeçaria; entre estas estampas, três ou quatro gessos suspensos faziam, com meu velho roupão, a indigência mais harmoniosa.

Tudo está em desacordo. Não há mais conjunto, não há mais unidade, não há mais beleza.

Uma nova governanta estéril que sucede alguém num presbitério, a mulher que entra na casa de um viúvo, o ministro que substitui outro ministro com a reputação arruinada, o prelado molinista que se apodera da diocese de um prelado jansenista não causam mais problemas que o escarlate intruso causou na minha casa.

Eu posso suportar sem desgosto a vista de uma camponesa. Este pedaço de pano grosseiro que cobre sua cabeça; esta cabeleira que cai esparsa sobre suas bochechas; estes farrapos esburacados que a vestem pela metade; esta má roupa de baixo que só vai até a metade de suas pernas; estes pés nus e cobertos de lama não podem me machucar: é a imagem de um estado que respeito; é o conjunto de desgraças de uma condição necessária e infeliz que eu lamento. Mas meu coração dispara; e, apesar da atmosfera perfumada que a segue, eu afasto os meus passos e desvio o olhar desta cortesã com penteado a pontos da Inglaterra, e os punhos esgarçados, as meias e os sapatos sujos me mostram a miséria do dia associada à opulência da véspera.

Tal teria sido meu domicílio, se o escarlate imperioso não tivesse colocado tudo sob seu uníssono.

Eu vi a Bergame ceder a parede, na qual ela estava há tanto tempo ligada, ao forro de tecido adamascado.

Duas estampas que não eram sem mérito: “O maná no deserto”, de Poussin, e “Esther diante de Xerxes”, também dele; uma vergonhosamente expulsa por uma anciã de Rubens, que é a triste Esther; o “maná” dissipado por uma “Tempestade” de Vernet.

A cadeira de palha largada na antecâmara pelo sofá de couro de luxo.

Homero, Virgílio, Horácio, Cícero, socorrer a fraca peça de pinheiro curvada sob sua massa, e se fechar num armário ricamente ornado, asilo mais digno deles do que de mim.

Um grande espelho se apoderar da coifa da minha lareira.

Estes dois lindos gessos que obtive graças à amizade de Falconet, consertados por ele mesmo, deslocados por uma Vênus agachada. A argila moderna destruída pelo bronze antigo.

A mesa de madeira ainda disputava terreno, a salvo por uma multidão de brochuras amontoadas desordenadamente e que pareciam ter o dever de subtraí-la muito tempo do destino cruel que a ameaçava. Um dia ela teve a sua sorte selada, e, apesar da minha preguiça, as brochuras e os papéis foram se enfileirar nas garras de uma escrivaninha preciosa.

Instinto funesto de conveniências! Tato delicado e ruinoso, gosto sublime que muda, que desloca, que edifica, que inverte; que esvazia os cofres dos pais; que deixa as filhas sem dote, os filhos sem educação; que faz tantas coisas belas e tão grandes males, você que substituiu na minha casa a fatal e preciosa mesa de madeira; é você quem perde as nações; é você que, quem sabe um dia, conduzirá todos os meus pertences sobre a ponte Saint-Michel, onde vai se ouvir a voz rouca de um juiz gritar: uma Vênus agachada por vinte luíses.

Havia um ângulo vazio ao lado da minha janela. Este ângulo pedia uma secretaria, que ele acabou obtendo.

Outro vazio desagradável, entre a prancheta da secretaria e o belo retrato de Rubens, foi preenchido por dois La Genée.

Aqui está uma Madalena do mesmo artista; ali, um esboço de Vien ou de Marchy; porque eu também me interessava em esboços. E foi assim que o reduto edificante do filósofo se transformou no gabinete escandaloso do publicano. Eu insulto assim a miséria nacional.

Da minha mediocridade inicial, só restou um tapete franjado. Este tapete mesquinho não combina com meu luxo, eu o sinto. Mas eu jurei e eu juro, já que os pés de Denis o filósofo jamais pisarão numa obra-prima da Savonnerie, que eu manterei comigo este tapete, assim como um camponês transferido de sua palhoça para o palácio de seu soberano guarda seus velhos sapatos. Quando, de manhã, coberto com o suntuoso escarlate, eu entro em meu gabinete, se  abaixo a vista percebo o meu velho tapete franjado; ele me lembra meu primeiro estado, e a vaidade para na entrada do meu coração.

Não, meu amigo, não: eu não estou corrompido. Minha porta se abre sempre à necessidade daquele que me procura; ele me encontra com a mesma afabilidade. Eu o escuto, o aconselho, o socorro, me apiedo dele. Minha alma não se endureceu; meu nariz não se empinou. Minhas costas estão boas e redondas, como continuarão a estar daqui em diante. É o mesmo tom de franqueza; é a mesma sensibilidade. Meu luxo é de data recente e o veneno ainda não agiu. Mas com o tempo, quem sabe o que pode acontecer? O que esperar daquele que deixou de lado sua mulher e sua filha, que se endividou, que cessou de ser esposo e pai, e que, ao invés de deixar no fundo de um cofre fiel, uma soma útil…

Ó, santo profeta! Levante sua mão ao céu, reze por um amigo em perigo, diga a Deus: se você vir nos seus decretos eternos que a riqueza vai corromper o coração de Denis, não poupe as obras-primas que ele idolatra; destrua-as e o reconduza à sua primeira pobreza; e eu direi ao céu de minha porta: ó Deus! Eu me resigno à oração do santo profeta e à sua vontade! Eu lhe abandono tudo; sim, tudo, com exceção do Vernet. Ah, me deixe o Vernet! Não é o artista, é você que o fez. Respeite a obra da amizade e a mantenha. Veja este farol, veja esta torre adjacente que se ergue à direita; veja esta velha árvore que os ventos despedaçaram. Como esta massa é bela! Abaixo desta massa obscura, veja estes rochedos cobertos de vegetação. É assim que sua mão possante os formou; é assim que sua mão benfeitora os revestiu. Veja esta esplanada desigual, que desce dos pés dos rochedos até o mar. É a imagem das degradações que você permitiu que o tempo exercesse sobre as coisas mais sólidas do mundo. O seu sol teria iluminado de outro modo? Deus! Se você destruir esta obra, dir-se-á que você é um Deus ciumento. Tenha piedade dos infelizes esparsos sobre esta margem. Não é suficiente para você ter-lhes mostrado o fundo dos abismos? Você só os salvou para perdê-los? Escute a súplica deste que lhe agradece. Ajude os esforços daquele que reúne os tristes restos de sua fortuna. Feche os ouvidos para as imprecações deste furioso: que pena! Ele se prometeu retornos tão vantajosos! Ele tinha pensado no repouso e na aposentadoria, ele estava na sua última viagem. Cem vezes a caminho, ele calculou por seus dedos o fundo de sua fortuna, ele tinha arranjado emprego para ela: e, então, todas suas esperanças foram frustradas; mal lhe restou o que lhe cobrisse os membros nus. Seja tocado pela ternura destes dois esposos. Veja o terror que você inspirou a esta mulher. Ela lhe rende graças pelo mal que você não lhe fez. Entretanto, seu filho, muito jovem para saber do perigo a que você lhe expôs, e também a seu pai e a sua mãe, se ocupa do fiel companheiro de viagem; ele segura a coleira de seu cachorro. Tenha piedade do inocente. Veja esta mãe que acabou de sair das águas com seu esposo; não é por ela mesma que ela tremeu, mas por seu filho. Veja como ela o abraça contra seu seio; veja como ela o beija. Ó Deus! Reconheça as águas que você criou. Reconheça-as, quando seu sopro as agita, e quando sua mão as pacifica. Reconheça as nuvens sombrias que você juntou, e que lhe agradou dissipar. Assim que elas se separam, elas se distanciam, e o claro do astro do dia renasce sobre a face das águas; eu pressagio a calma neste horizonte avermelhado. Como é distante, este horizonte! Ele não se confina com o mar. O céu desce mais abaixo e parece girar em volta do globo. Acabe de clarear este céu; acabe de devolver ao mar sua tranquilidade. Permita a estes marinheiros fazer o seu navio afundado navegar novamente; ajude o seu trabalho; dá-lhes forças, e deixe a mim o meu quadro. Deixe-me, como a vara que com a qual você castigará o homem vão. Já não sou eu que sou visitado, é o Vernet que as pessoas vêm admirar na minha casa. O pintor humilhou o filosofo.

Ó meu amigo, o belo Vernet que eu possuo! O motivo é o fim de uma tempestade sem uma catástrofe desagradável. As águas ainda estão agitadas; o céu coberto de nuvens; os marinheiros se ocupam de seu navio afundado; os habitantes acorrem das montanhas vizinhas. Como este artista tem espírito! Não lhe foi necessário mais do que um pequeno número de figuras principais para juntar todas as circunstâncias do instante que ele escolheu. Como toda esta cena é verdadeira! Como tudo está pintado com ligeireza, facilidade e vigor! Eu quero guardar este testemunho de sua amizade. Eu quero que  meu genro lhe transmita a seus filhos, e estes aos filhos que nascerão deles.

Se você visse o belo conjunto deste pedaço; como tudo ali está harmonioso; como as causas e consequências se encadeiam; como tudo se faz valer sem esforço e sem preparo; como estas montanhas da direita só vaporosas; como estes rochedos e os edifícios sobre eles só belos; como esta árvore é pitoresca; como esta esplanada é iluminada; como a luz se degrada; como estas figuras só dispostas, verdadeiras, agitadas, naturais, vivas; como elas interessam; a força com a qual elas só pintadas; a pureza com a qual elas só desenhadas; como elas se destacam do fundo; a enorme extenso deste espaço; a verdade destas águas; estas nuvens, este céu, este horizonte!  Aqui o fundo é privado de luz e a frente é iluminada, ao contrário da técnica comum. Venha ver meu Vernet. Mas não mo subtraia.

Com o tempo, as dívidas serão quitadas; o remorso se acalmará; e eu terei uma satisfação pura. Não tema que o furor de amontoar belas coisas me domine. Os amigos que eu tinha, ainda tenho; e o número não aumentou. Eu tenho Laís, mas ela não me tem. Feliz entre seus braços, estou prestes a cedê-la àquele que eu amarei e que ela tornará mais feliz que eu. E para lhe dizer meu segredo ao ouvido, esta Laís, que se vende tão cara aos outros, não me custou nada.

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