Travessuras da menina má, de Mario Vargas Llosa
Literatura

Travessuras da menina má, de Mario Vargas Llosa

29 de março de 2015 0

Em um bairro rico da cidade peruana de Miraflores duas chilenas surgem movimentando a vida social dos jovens. Lily tinha cerca de 15 anos, enquanto sua irmã Lucy tinha uns dois anos a menos. Segundo Ricardo Samacurcio, o personagem que narra em primeira pessoa o extraordinário Travessuras da menina má, do escritor peruano Mario Vargas Llosa (Alfaguara, 303 páginas), “o adjetivo marcante parecia ter sido inventado para elas, mas, sem deixar de sê-lo, Lucy era menos marcante que a irmã, não só porque seu cabelo era menos louro e mais curto e se vestia com menos atrevimento que Lily, mas também porque era mais calada e, na hora de dançar, apesar de também fazer firulas e requebrar a cintura com uma audácia que nenhuma miraflorense se atreveria a assumir, parecia uma garota recatada, inibida e quase insípida em comparação com aquele pião, aquela labareda ao vento, aquele fogo-fátuo que era Lily quando, colocados os discos na vitrola, o mambo explodia e começávamos todos a dançar.”

Quando Lily dançava o mambo, os jovens da conservadora Miraflores ficavam fascinados, concentrados na “apresentação” dela, enquanto que os mais velhos reprovavam. No dizer indignado de uma tia de Ricardo Samacurcio, Alberta, Lily dançava “como uma Tongolele”, parecia “uma rumbeira de filme mexicano”. E acrescentava, maldosa: “bem, não vamos esquecer que é chilena, e o forte das mulheres desse país não é a virtude”.

Como muitos outros rapazes do bairro, Ricardo Samacurcio se apaixonou por uma das chilenas. A escolhida foi Lily, para quem ele dizia: “em você, gosto de tudo, mas o melhor é o seu jeitinho de falar”. Pediu-a em namoro três vezes – e foi recusado nas três. Estranhamente, para duas jovens aparentemente tão avançadas, elas nunca aceitavam os pedidos de namoro de ninguém – e nem deixavam ninguém ir até a sua casa, o que começou a criar uma aura de mistério em torno delas.

Um dia parte deste mistério foi solucionado quando Lily e Lucy foram desmascaradas em um jantar. Não eram chilenas coisíssima nenhuma, e sim peruanas que imitavam o sotaque daquele país. A partir dali a sociedade do bairro miraflorense onde Ricardo morava não ouviu mais falar nas duas impostoras.

Anos depois, Samacurcio está morando em Paris e se torna amigo de um guerrilheiro esquerdista seu compatriota, que está na capital francesa planejando uma revolução, no Peru, semelhante àquela vitoriosa de Fidel Castro em 1959. Um dos serviços do ativista é reunir jovens que iriam fazer um curso de guerrilha em Cuba, patrocinado pelo governo local. Por uma das coincidências deliciosas que permeiam Travessuras da menina má, uma das guerrilheiras peruanas que está em Paris é Lily, a falsa chilena por quem Ricardo Samacurcio se apaixonara. Os dois se encontram, têm um rápido affair, mas ela acaba sendo meio obrigada a ir até Cuba fazer seu curso – e Ricardo fica mais vários anos sem ver o grande amor de sua vida.

Quando os dois se encontram novamente, Ricardo – que trabalhava fazendo traduções simultâneas em congressos e órgãos internacionais – acaba sabendo que a antiga Lily agora era a Madame Arnoux, a rica esposa de Robert Arnoux, um diplomata francês. Eles retomam o affair, mas agora como amantes.

Depois disso, a história ainda tem muitas reviravoltas, mas nem é necessário descrevê-las em mais detalhes para não estragar a(s) surpresa(s). Só o que se pode adiantar é que a Menina Má (apelido que Samacurcio deu para o grande amor de sua vida) tende a querer sempre quer maridos mais ricos, e Ricardo nunca consegue esquecê-la.

Travessuras da menina má é um livro extraordinário. Se, por um lado, a riqueza do personagem da Menina Má e o grande amor que o narrador sente por ela são os temas mais importantes do romance, por outro os personagens que o narrador encontra pelo caminho são interessantíssimos e bem desenvolvidos. Tanto o guerrilheiro peruano já citado, como o hippie peruano que mora em Londres e o casal – ele belga, ela venezuelana – e seu filho adotivo vietnamita mudo são inesquecíveis.

Além disso, Mario Vargas Llosa (que é extremamente interessado em política – chegou a concorrer à presidência do Peru), comenta, com alguma riqueza de detalhes, diversos acontecimentos paralelos à conturbada vida de Ricardo Samacurcio: a inquietude na Paris de 1968; a explosão da contracultura em Londres no final dos anos sessenta; a triste decadência de seu país natal, sempre envolto por golpes de Estado e sucessivos fracassos econômicos.

Travessuras da menina má é um livro bem humorado, profundamente humanista, e, por que não dizer, otimista. Uma prova inequívoca de não é necessário ser amargo para se fazer grande literatura.

(texto publicado na revista dominical do jornal O Estado do Paraná, em novembro de 2006)

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