Narrativas do espólio
Literatura

Narrativas do espólio

10 de março de 2015 0

“Ah”, disse o rato, “o mundo torna-se cada vez mais estreito. A princípio era tão vasto que me dava medo, eu continuava correndo e me sentia feliz com o fato de que finalmente via à distância, à direita e à esquerda, as paredes, mas essas longas paredes convergem tão depressa uma para a outra, que já estou no último quarto e lá no canto fica a ratoeira para a qual eu corro”. – “Você só precisa mudar de direção”, disse o gato, e devorou-o.

O pequeno conto acima chama-se Pequena Fábula, foi escrito por Franz Kafka e traduzido magistralmente por Modesto Carone. Ele faz parte do volume chamado Narrativas do Espólio, publicado pela Companhia das Letras, que engloba os contos escritos por Kafka que não foram publicados enquanto este estava vivo – daí o título, dado postumamente.

Assim como O Abutre (ver mais detalhes aqui), Pequena Fábula é uma pequena obra-prima que, num único parágrafo, mostra toda a sombria visão de mundo de Kafka, onde simplesmente não há nenhuma saída possível. Aliás, a tradução de Modesto Carone para O Abutre (também incluída em Narrativas do Espólio) segue abaixo:

Era um abutre que bicava meus pés. Ele já havia estraçalhado botas e agora bicava os pés propriamente. Toda vez que atacava, voava várias vezes ao meu redor, inquieto, e depois prosseguia o trabalho. Passou por ali um senhor, olhou um pouquinho e perguntou então por que eu tolerava o abutre.
-Estou indefeso – eu disse. – Ele chegou e começou a bicar, naturalmente eu quis enxotá-lo, tentei até enforcá-lo, mas um animal desses te muita força, ele também queria saltar no meu rosto, aí eu preferi sacrificar-lhe os pés. Agora eles estão quase despedaçados.
– Imagine, deixar-se torturar dessa maneira! – disse o senhor. – Um tiro e o abutre está liquidado.
– É mesmo? – perguntei. – E o senhor pode cuidar disso?
– Com prazer – disse ele -, só preciso ir para casa pegar minha espingarda. O senhor pode esperar mais meia hora?
– Isso eu não sei – disse e fiquei em pé um momento, paralisado de dor.
Depois falei:
– De qualquer modo tente, por favor.
– Muito bem – disse o senhor. – Vou me apressar.
Durante a conversa o abutre escutou calmamente, deixando o olhar perambular entre mim e aquele senhor. Agora eu via que ele tinha entendido tudo: levantou vôo, fez a curva da volta bem longe para ganhar ímpeto suficiente e depois, como um lançador de dardos, arremessou até o fundo de mim o bico pela minha boca. Ao cair para trás senti, liberto, como ele se afogava sem salvação no meu sangue, que enchia todas as profundezas e inundava todas as margens.

A mesma impossibilidade, a mesma falta de saídas viáveis, o mesmo tipo de história é o que Kafka apresenta em outro conto de Narrativas do Espólio, chamado Batida no portão da propriedade, que conta a história de um casal de irmãos que é preso – possivelmente para sempre – e torturado porque a menina bateu, por traquinagem, no portão de uma propriedade e saiu correndo.

Mas Kafka nem sempre é tão dramático e violento: em outros contos situações “kafkianas” aparecem em situações muito mais prosaicas – e quase engraçadas. Um exemplo notável é o pequeno conto Desista!, reproduzido abaixo:

Era de manhã bem cedo, as ruas limpas e vazias, eu ia para a estação ferroviária. Quando confrontei um relógio de torre com o meu relógio, vi que já era muito mais tarde do que havia acreditado, precisava me apressar bastante; o susto dessa descoberta fez-me ficar inseguro no caminho, eu ainda não conhecia bem aquela cidade, felizmente havia um guarda por perto, corri até ele e perguntei-lhe sem fôlego pelo caminho. Ele sorriu e disse:
– De mim você quer saber o caminho?
– Sim – eu disse -, uma vez que eu mesmo não posso encontrá-lo.
– Desista, desista – disse ele e virou-se com um grande ímpeto, como as pessoas que querem estar a sós com o seu riso.

Em Narrativas do Espólio, a visão kafkiana da impossibilidade das coisas aparece das maneiras mais inesperadas: em O Vizinho, um concorrente direto se estabelece ao lado do escritório do personagem principal e se aproveita das paredes finíssimas que separam os dois para ouvir tudo; em O Timoneiro um homem tira, à força, o timoneiro de um navio de seu posto, e o restante da tripulação assiste a tudo sem reagir; Uma confusão cotidiana conta a história de A, que tenta mas simplesmente não consegue fechar um negócio com B, que mora em H; a segunda parte do notável conto Blumfeld, um solteirão de meia idade conta os (praticamente insolúveis) problemas que o personagem principal encontra em seu trabalho; O mestre-escola da aldeia conta a história de um senhor que descobriu “uma toupeira muito grande” mas cuja descoberta não era respeitada por que ele não era cientista; O recrutamento das tropas mostra rapazes que viajam para outras cidades e tentam, em vão, ser convocados para o exército; Comunidade conta a história de cinco amigos que andam sempre juntos, e tentam de todas as maneiras excluir um sexto que se imiscui entre eles.

A descrição minuciosa e avassaladora de burocracias absurdas é outro pilar dos escritos de Kafka. Um exemplo disso é o inesperado e magistral conto Posêidon, onde o deus dos mares se sacrifica para colocar o trabalho em dia:

Posêidon estava sentado à sua escrivaninha e fazia contas. A administração de todas as águas lhe dava um trabalho interminável. Poderia ter quantos auxiliares quisesse, possuía muitos, aliás; mas, uma vez que levava muito a sério seu ofício, revia mais uma vez tudo e sendo assim os auxiliares o ajudavam pouco. Não se pode dizer que o trabalho o alegrasse; na verdade ele o realizava só porque lhe fora imposto; já havia solicitado muitas vezes tarefas mais prazerosas, conforme se expressava; mas, sempre que lhe faziam propostas diferentes, era manifesto que nada o agradava tanto quanto o cargo que até então ocupara. Era muito difícil, além disso, encontrar outra coisa para ele. Com efeito, era-lhe impossível atribuir-lhe algo como um determinado mar; sem mencionar que, neste caso, o trabalho de calcular não seria apenas maior, mas também mesquinho, o grande Posêidon só podia receber um posto que fosse dominante. E, se lhe ofereciam um ofício fora da água, sentia-se mal com a idéia: seu alento divino se descontrolava, o tórax de bronze oscilava. De resto, não levavam realmente a sério as queixas que fazia; quando um poderoso importuna, é preciso dar a impressão de tentar ceder mesmo nas questões mais sem perspectiva: ninguém pensava em remover de fato Posêidon do seu posto; desde o início mais remoto tinha sido destinado a ser o rei dos mares e assim devia permanecer.
O que mais o irritava – e essa era a causa principal de sua insatisfação com o cargo – era escutar as imagens que faziam dele como, por exemplo, ele dirigindo sem parar as ondas com o tridente. Enquanto isso Posêidon estava sentado nas profundezas dos mares do mundo, fazendo contas ininterruptamente; de vez em quando uma viagem para se encontrar com Júpiter era a única quebra de monotonia – viagem, por sinal, de que ele na maioria das vezes voltava furioso. Assim é que mal tinha visto os mares: só fugazmente, durante a célere ascensão ao Olimpo, sem nunca o ter efetivamente atravessado. Costumava dizer que ia esperar o fim do mundo, aí então se produziria com certeza um segundo de tranqüilidade, no qual ele, bem próximo ao fim, depois de revisar o último cálculo, poderia ainda dar, rapidamente, um pequeno giro por tudo.

A burocracia kafkiana aparece também, por exemplo, em Advogados de defesa, que conta das dificuldades em se obter os tais advogados: a descrição asfixiante de um edifício público parece ter saído do romance O Processo, do mesmo autor. Originário deste livro parece ser também Sobre a questão das leis, onde pessoas do povo discutem se as leis existem mesmo – já que ninguém tem acesso a elas – ou se são apenas uma ficção criada pelos nobres para que estes se perpetuem no poder. A distância intransponível entre os donos do poder e o povo é exemplificada brilhantemente em Durante a construção da Muralha da China. O poder despótico das ditaduras é mostrado em A Recusa, onde as pessoas de uma aldeia se reúnem numa praça e pedem favores – quase sempre recusados – ao coronel que domina a região.

Um tema que já aparecera em obras de Kafka como Carta ao pai, a dificuldade de relações entre pais e filhos, é retratado em Volta ao lar – onde o rapaz que chega à casa paterna depois de algum tempo fora não consegue pegar coragem para bater na porta e entrar.

Outros contos em Narrativas do Espólio são, entretanto, de mais difícil classificação. Muitos deles têm, sim, o travo amargo característico de Kafka, mas acabam enveredando por outros caminhos: linguagem poética, paradoxo, ou fantástico – ou mesmo uma mistura de todos estes. Veja-se por exemplo o interessantíssimo e inesperado A verdade sobre Sancho Pancha:

Sancho Pança, que por sinal nunca se vangloriou disso, no curso dos anos conseguiu, oferecendo-lhe inúmeros romances de cavalaria e de salteadores nas horas do anoitecer e da noite, afastar de si o seu demônio – a quem mais tarde deu o nome de D. Quixote – de tal maneira que este, fora de controle, realizou os atos mais loucos, os quais no entanto, por falta de um objeto predeterminado – que deveria precisamente ser Sancho Pança -, não prejudicaram ninguém. Sancho Pança, um homem livre, acompanhou imperturbável, talvez por um certo senso de responsabilidade, D. Quixote nas suas sortidas, retirando delas um grande e proveitoso divertimento até o fim de seus dias.

Uma espécie de exercício paradoxal de inteligência é o conto Sobre os símiles:

Muitos se queixam de que as palavras dos sábios não passam de símiles, mas não utilizáveis na vida diária – e esta é a única que temos. Quando o sábio diz: “Vá para o outro lado”, ele não quer significar que se deva passar para o lado de lá, o que, seja como for, ainda se poderia fazer, se o resultado da caminhada valesse a pena; ele no entanto se refere a algum outro lado lendário, a alguma coisa que não conhecemos, que nem ele consegue designar com mais precisão e que, também neste caso, não pode nos ajudar em nada. Todos esses símiles, na realidade, querem apenas dizer que o inconcebível é inconcebível, e isso nós já sabíamos. Porém aquilo com que nos ocupamos todos os dias são outras coisas.
A esse respeito alguém disse: “Por que vocês se defendem? Se seguissem os símilies, teriam também se tornado símiles e com isso livres do esforços do dia-a-dia”.
Um outro disse: “Aposto que isso também é um símile”.
O primeiro disse: “Você ganhou”.
O segundo disse: “Mas infelizmente só no símile”.
O primeiro disse: “Não, na realidade; no símile você perdeu”.

Por mais amargo que seja o conto, A ponte é um exemplo da belíssima linguagem poética de Kafka:

Eu estava rígido e frio, era uma ponte, estendido sobre um abismo. As pontas dos pés cravadas deste lado, do outro as mãos, eu me prendia firme com os dentes na argila quebradiça. As abas do meu casaco flutuavam pelos meus lados. Na profundeza fazia ruído o gelado riacho de trutas. Nenhum turista se perdia naquela altura intransitável, a ponte ainda não estava assinalada nos mapas. – Assim eu estava estendido e esperava; tinha de esperar. Uma vez erguida, nenhuma ponte pode deixar de ser ponte sem desabar.
Certa vez, era pelo anoitecer – o primeiro, o milésimo, não sei – meus pensamentos se moviam sempre em confusão e sempre em círculo. Pelo anoitecer no verão, o riacho sussurrava mais escuro – foi então que ouvi o passo de um homem! Vinha em direção a mim, a mim. – Estenda-se, ponte, fique em posição, viga sem corrimão, segure aquele que lhe foi confiado. Compense, sem deixar vestígio, a insegurança do seu passo, mas, se ele oscilar, faça-se conhecer e como um deus da montanha atire-o à terra firme.
Ele veio; com a ponta de ferro da bengala deu umas batidas em mim, depois levantou com ela as abas do meu casaco e as pôs em ordem em cima de mim. Passou a ponta por meu cabelo cerrado e provavelmente olhando com ferocidade em torno deixou-a ficar ali longo tempo. Mas depois – eu estava justamente seguindo-o em sonho por montanha e vale – ele saltou com os dois pés sobre o meio do meu corpo. Estremeci numa dor atroz, sem compreender nada. Quem era? Uma criança? Um sonho? Um salteador de estrada? Um suicida? Um tentador? Um destruidor? E virei-me para vê-lo. – Uma ponte que dá voltas! Eu ainda não tinha me virado e já estava caindo, desabei, já estava rasgado e trespassado pelos cascalhos afiados, que sempre me haviam fitado tão pacificamente da água enfurecida.

Fascinante também é o conto Prometeu, sobre o personagem da mitologia grega que, humano, tentou tirar o fogo dos deuses e em virtude disso foi por estes preso eternamente a uma rocha, com o fígado continuamente bicado por uma águia:

Sobre Prometeu dão notícias quatro lendas:
Segundo a primeira, ele foi acorrentado no Cáucaso porque havia traído os deuses aos homens, e os deuses remeteram águias que devoravam seu fígado que crescia sem parar.
De acordo com a segunda, Prometeu, por causa da dor causada pelos bicos que o picavam, comprimiu-se cada vez mais fundo nas rochas até se confundir com elas.
Segundo a terceira, no decorrer dos milênios sua traição foi esquecida, os deuses se esqueceram, as águias se esqueceram, e ele próprio se esqueceu.
Segundo a quarta, todos se cansaram do que havia se tornado sem fundamento. Os deuses se cansaram, as águias se cansaram, a ferida, cansada, fechou-se.
Restou a cadeia inexplicável de rochas. A lenda tenta explicar o inexplicável. Uma vez que emerge de um fundo de verdade, ela precisa terminar de novo no que não tem explicação.
E o que dizer sobre o extraordinário e onírico À noite? O melhor é apenas reproduzi-lo aqui:
Afundado na noite. Como alguém que às vezes baixa a cabeça para meditar, totalmente afundado na noite. Em torno as pessoas dormem. Uma pequena encenação, um inocente auto-engano de que dormem em casas, em camas firmes, sob o teto sólido, estirados ou encolhidos sobre colchões, em lençóis, sob cobertas, na realidade reuniram-se como outrora e mais tarde, em região deserta, um acampamento ao ar livre, um número incalculável de pessoas, um exército, um povo, sob o céu frio, na terra fria, estendidos onde antes estavam em pé, a testa premida sobre o braço, o rosto voltado para o chão, respirando tranqüilamente. E você vigia, é um dos vigias, descobre o mais próximo pela agitação da madeira em brasa no monte de galhos secos ao seu lado. Por que você vigia? Alguém precisa vigiar, é o que dizem. Alguém precisa estar aí.

Outros exemplos de contos “inclassificáveis” de Narrativas do Espólio: O caçador Graco, que conta a história de um cadáver que, de alguma forma, ainda vive e mantém a consciência, e que peregrina num barco pelo mundo; a primeira parte de Blumfeld, um solteirão de meia-idade, que apresenta duas bolinhas saltitantes que seguem a personagem principal por toda a parte; Um cruzamento, uma história contada com maestria e profundidade sobre um animal metade gatinho, metade cordeiro; O silêncio das sereias, que mostra a esperteza do personagem mitológico Ulisses ao escapar do feitiço das sereias; O brasão da cidade, um pequeno conto totalmente inesperado sobre a Torre de Babel; o paradoxal A Prova; O Pião, que fala de um filósofo que queria descobrir o verdadeiro significado das coisas num pião jogado por crianças; o estranho O Casal, que trata de uma ressurreição; e o virtualmente inclassificável Investigação de um cão, “certamente uma das ficções mais originais e misteriosas da obra de Kafka”, no dizer do tradutor Modesto Carone.

Narrativas do Espólio é um livro belíssimo, onde o magistral estilo seco e objetivo de Kafka cede espaço, aqui e ali, para passagens oníricas e/ou poéticas. Creio que a melhor maneira de concluir a coluna sobre este livro é reproduzir um de seus melhores contos, A Partida:

Ordenei que tirassem meu cavalo da estrebaria. O criado não me entendeu. Fui pessoalmente à estrebaria, selei o cavalo e montei-o. Ouvi soar à distância uma trompa, perguntei-lhe o que aquilo significava. Ele não sabia de nada e não havia escutado nada. Perto do portão ele me deteve e perguntou:
– Para onde cavalga, senhor?
– Não sei direito – eu disse – só sei que é para fora daqui, fora daqui. Fora daqui sem parar: só assim posso atingir meu objetivo.
– Conhece então seu objetivo? – perguntou ele.
– Sim – respondi -. Eu já disse: “fora-daqui”, é esse o meu objetivo.
– O senhor não leva provisões – disse ele.
– Não preciso de nenhuma – disse eu -. A viagem é tão longa que tenho de morrer de fome se não receber nada no caminho. Nenhuma provisão pode me salvar. Por sorte esta viagem é realmente imensa.

(texto escrito em meados de 2004)

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