Duas peças de Molière
Literatura

Duas peças de Molière

26 de agosto de 2018 0

Dois jovens ricos são desprezados por duas primas, Magdelon e Cathos – respectivamente filha e sobrinha de Gorgibus, um rico burguês da província – porque, segundo elas, eles não são corajosos, nobres e românticos o suficiente. Para se vingar delas, os jovens mandam dois de seus empregados, Mascarille e Jodelet, disfarçados de cultos membros da nobreza, para enganá-las. Elas caem na conversa dos falsos nobres e se apaixonam por eles – até, claro, descobrir que eles não são o que dizem ser, quando passam a desprezá-los.

Já Don Juan é um conquistador que não consegue – ou não quer – manter um relacionamento longo com nenhuma das mulheres com as quais começa um relacionamento. Como ele vai prometendo casamentos a torto e a direito, as famílias das garotas abandonadas vão ficando mais e mais furiosas com ele – nem mesmo seu fiel empregado, Sganarelle, tem mais paciência com as aventuras do patrão.

Os resumos apresentados acima são referentes a duas peças de Jean Baptiste Poquelin, conhecido como Molière (1622-1673), “As preciosas ridículas” e “Don Juan – o convidado de pedra”, que li recentemente no original.

Peça curta de sucesso incomum, a comédia “As preciosas ridículas” (1659) é genial ao mostrar, de maneira implacável, o costume de viver de aparências, tentando se mostrar melhor do que se é.

Já a tragicomédia “Don Juan – o convidado de pedra” (1665) é impiedosa com o famoso conquistador – e a peça, de modo geral, é menos interessante que as demais do grande dramaturgo que eu já li. Mas um trecho sobre a hipocrisia falado pelo personagem principal é tão brilhante e impiedoso que vale a pena transcrevê-lo na íntegra (na tradução de Millôr Fernandes):

“Disso ninguém mais se envergonha. Ao contrário, se orgulha. A hipocrisia é um vício. Mas está na moda. E todos os vícios na moda são virtudes. O personagem do homem de bem é o mais fácil de interpretar em nossos dias. Qualquer hipócrita o representa com razoável perícia. E fica quase impossível saber se estamos diante de um hipócrita no papel de um homem de bem ou se conversamos com um homem de bem que banca o hipócrita para não ser humilhado como homem de bem. O exercício da hipocrisia oferece maravilhosas possibilidades. É uma arte da qual faz parte natural a impostura, como o blefe, em certos tipos de jogos. E mesmo quando a impostura é transparente, ninguém ousa condená-la, com medo de que isso abra o caminho para a condenação de imposturas mais habilidosas. Todos os outros vícios dos homens estão sujeitos a censuras. Qualquer um se sente no direito e até na obrigação de condená-los. Mas a hipocrisia é um vício privilegiado, que tapa a boca de todos que o percebem e transita na corte com vaidosa impunidade. Ficou até elegante. Chic. Hipócritas usam as mesmas máscaras, os mesmos ademanes e comportamentos, e formam uma sociedade fechada e autoprotetora. Ofender um significa todos te caírem em cima. E mesmo os que, vivendo em meio a eles, agem de boa-fé e ficam perturbados com determinadas ações… Estranhas, sempre acabam envolvidos. Caem ingenuamente nas trampas dos hipócritas e, sem saber, dão crédito à cambada. Você não sabe quantos hipócritas eu conheço que, com alguns poucos estratagemas, limparam as manchas e os crimes de sua juventude. E aí, usando o escudo e o manto da religião, se transformaram em cidadãos respeitáveis, isto é, os homens mais canalhas deste mundo. Por mais que se saiba de suas intrigas e futricas, que se conheça e divulgue aquilo que realmente são, nem por isso eles perdem o prestígio e a estima das pessoas. Basta que inclinem a cabeça um pouco, humildemente, que deem um ou dois suspiros fundos e mortificados, e rolem os olhos em direção ao Céu, para serem reabilitados de tudo ou de qualquer coisa. É nesse refúgio favorável que eu quero me abrigar e colocar em segurança meus interesses. Claro, não abandonarei nenhum dos meus saudáveis hábitos. Apenas, de hoje em diante, vou me ocultar um pouco, agir mais em surdina. E se alguém me descobrir, terei, sem mover sequer um dedo, toda a cabala correndo em meu socorro, defendendo os meus, e os dela! Interesses, contra tudo e contra todos. Enfim, adotei a maneira de fazer impunemente tudo que me der na telha. Posso me erigir, de agora em diante, em censor dos atos alheios, julgando duramente a todos; reservando meus elogios apenas ao comportamento de uma pessoa, a única que sempre achei acima de qualquer suspeita. (Pausa) Eu. Se alguém ousar me ofender, por mínima que seja a ofensa, eu não o perdoarei jamais, guardar-lhe-ei um ódio irredutível, e ostensivo, o que intimidará outros candidatos à difamação. Serei o vingador dos interesses do Céu e, sob esse manto assustador, perseguirei meus inimigos, acusando-os de impiedade, desencadeando contra eles o zelo e a perseguição dos carolas que, sem conhecimento de causa, os cobrirão de injúrias, condenando-os à execração pública. É assim que se usa a fraqueza, a ignorância e a pusilanimidade dos homens. É assim que um sábio torna virtudes os vícios de seu tempo.”

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