Madredeus
Música

Madredeus

24 de março de 2016 0

Uma linda mulher com uma voz potente e emocionante, dois violões, um sintetizador e um baixo acústico (o grupo não tem nenhum tipo de percussão, e na formação original não tinha baixo acústico – mas tinha violoncelo e acordeão), e todos os integrantes vestidos a caráter: o grupo português Madredeus impressiona pela música, pelas letras… e pelo visual.

O estilo do grupo está praticamente na fronteira do popular e do erudito, graças às atmosferas criadas e à instrumentação utilizada. O som é extremamente original – uma releitura, uma modernização do fado português. As músicas são freqüentemente melancólicas, tristes mesmo, e a temática portuguesa da “saudade” é utilizada à exaustão. Interessante notar também que o Madredeus é considerado por muita gente uma música para relaxamento: quem sabe o grupo fosse até parente da new age music, se a interpretação não fosse tão intensa e apaixonada.

De todos os instrumentistas que passaram pelo Madredeus, os mais importantes e hoje os únicos remanescentes da formação original do grupo são Pedro Ayres Magalhães, violonista e principal compositor, e Teresa Salgueiro, a vocalista.

O grupo lançou seu primeiro disco, Os dias da Madredeus (Madredeus é o nome do bairro aonde começaram os ensaios), em 1987. Este álbum tem qualidade da gravação precária, mas a espontaneidade mais a originalidade e qualidade das canções compensam com sobras as deficiências técnicas. A temática presente em grande parte da carreira já está lá: letras melancólicas e um tanto generalistas, que falam mais de impressões e sensações do que descrição de fatos ocorridos.

Mas é em Existir, o disco seguinte, surgido em 1990, que o Madredeus se transforma no grupo que colocou Portugal no mapa-múndi musical: em músicas como O Pastor, A Vontade de Mudar e Confissão o estilo do grupo já está completamente maduro. A interpretação de Teresa Salgueiro, então, é um assombro: em comparação ao álbum anterior, sua voz ficou mais aguda, mais precisa, mais apaixonada e muito mais segura. E a grande canção deste álbum é mesmo a lancinante O Pomar das Laranjeiras, certamente uma das três melhores músicas dos Madredeus.

Em 1992 eles lançam o álbum duplo ao vivo Lisboa, onde são reinterpretadas canções dos dois discos anteriores (em músicas do primeiro disco de estúdio dos Madredeus, como A Cidade e A Cantiga do Campo Teresa Salgueiro nem parece a mesma cantora, tão impressionante é sua interpretação). Lisboa é uma sucessão inesquecível de pontos altos, e as interpretações são quase sempre melhores que as originais de estúdio. Como se não bastasse, as três inéditas, a animadíssima (para os Madredeus!) A Estrada do Monte e os fados tradicionais Mudar de Vida e Canto de Embalar são músicas diferentes das que o Madredeus costumava fazer, e o resultado é também extraordinário. O grande ponto alto do álbum é a inacreditável reinterpretação de A Vontade de Mudar, originalmente lançada no álbum Existir.

Em 1994 surge o álbum Espírito da Paz, o disco com maior número de obras-primas do grupo. Já a partir do título, é um álbum tranqüilo e repousante – mas nem por isto menos emocionante. É também o álbum mais mais impressionista dos Madredeus – a tendência do grupo em falar apenas de sensações e sentimentos atinge seu ápice aqui. Pelo nome das obras-primas presentes neste álbum pode-se ter uma idéia disto: Silêncio, Pregão (um quase flamenco, com participação vocal do violoncelista Francisco Ribeiro), O Mar, Sentimento, Culpa, As Cores do Mar, Ao Longe o Mar, Vem.

Como estavam praticamente sem gravar músicas inéditas desde 1990, muito material sobrou das sessões de gravação de O Espírito da Paz. Estas “sobras” foram aproveitadas numa trilha sonora de um bom filme inspirado no Madredeus, chamado Lisbon Story, do diretor alemão Wim Wenders. Esta trilha sonora chamou-se Ainda, e, apesar de grandes momentos como Céu da Mouraria e o quase tango Alfama, fica a sensação de um álbum de sobras mesmo, ainda mais se comparado com a maravilha que é O Espírito da Paz.

Em 1997, com o álbum O Paraíso, acontece uma revolução no grupo: saem o violoncelo e o acordeão, e entra o baixo acústico. Isto representa uma grande mudança de sonoridade, pois a grande quantidade de cordas no primeiro plano deixam o som mais dedilhado e menos “etéreo”. E, ainda mais fundamental, a temática das letras muda completamente: tudo o que era antes impreciso e vago passa a ser contado de forma direta e apaixonada. O Paraíso é um disco de amor, de abandono, de saudade, com sentimentos transbordando diretamente na maioria das faixas. Apesar de ser um tanto irregular (algumas canções, como A Tempestade e O Fim da Estrada são chatas mesmo), o álbum tem, como sempre, grandes obras-primas: Haja o que Houver, Andorinha da Primavera e Coisas Pequenas. E tem a canção Não Muito Distante, o ápice supremo do grupo. Uma canção de dor e saudade, forte e emocionante. Eu tenho certeza que Bach assinaria Não Muito Distante com grande satisfação.

No mesmo esquema do álbum duplo ao vivo Lisboa, surge, em 1998, o também duplo ao vivo O Porto. Apesar de belas inéditas como Alma e Os Foliões, O Porto é uma decepção completa. É que simplesmente não dá pra entender o que aconteceu com a Teresa Salgueiro neste disco: com grande parte dele baseado em canções de O Paraíso, não há em O Porto nenhuma interpretação que chegue nem perto daquelas do álbum de estúdio de 1997. Perto de O Paraíso, O Porto é frouxo, fraco, sem vida. Claro, se você não conhece nada dos Madredeus, este é um ótimo álbum, sem nenhuma dúvida… mas apenas neste caso.

Em 2000 surge Movimento, o álbum mais estranho do grupo. Apesar de músicas maravilhosas como A Lira – Solidão no Oceano, O Olhar e Um Raio de Luz Ardente, na maioria delas, como Anseio e Ecos na Catedral por exemplo, a sonoridade é diferente de tudo o que o Madredeus fez anteriormente: seria a quantidade enorme de dedilhados, quase abafando a melodia, um sinal de que o maior grupo português de todos os tempos, estaria virando um negócio assim… new age? Queira Deus que não.

(Texto escrito em 2001)

0

There are 0 comments

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *