“Dois dias, uma noite”, de Jean-Pierre e Luc Dardenne
Cinema

“Dois dias, uma noite”, de Jean-Pierre e Luc Dardenne

7 de março de 2016 0

Sandra esteve de licença em seu emprego na fábrica por um longo tempo, devido a uma fortíssima depressão. Antes de ela reassumir o posto, o chefe da seção em que ela trabalha faz uma votação entre seus subordinados: ou os funcionários recebem um abono de 1000 euros e Sandra perde o emprego, ou ela retoma o posto e eles perdem o abono. Na votação, realizada na manhã de uma sexta-feira, Sandra perde. Uma colega – que tinha votado pela sua permanência – insiste com a demitida para que ela vá falar com o chefe da seção, que acaba concordando com uma nova votação na segunda-feira pela manhã. Sandra, então, tem o final de semana para tentar convencer os colegas que votem a favor dela. Incentivada – quase que obrigada – pelo marido, que trabalha como chefe de cozinha (o casal precisa do salário dela para pagar a hipoteca do apartamento onde moram), ela visita a casa de cada um de seus colegas para pedir os votos pela sua permanência. Alguns, que tinham votado pela sua demissão, se emocionam e declaram que estarão a favor dela na segunda-feira. Outros são agressivos e lhe comunicam que não vão mudar seus votos de jeito nenhum.

Esta, em linhas gerais, é a história de “Dois dias, uma noite”, excepcional filme dos irmãos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne, de 2014. O título se refere ao fim-de-semana em que Sandra (Marion Cotillard, perfeita) tenta influenciar o voto dos colegas para não perder o seu emprego.

Um dos aspectos abordados no filme é o desemprego e a crise econômica na Europa, conforme citado por Inácio Araújo em sua crítica de 5 de fevereiro de 2015 na Folha de São Paulo. Outro aspecto, que vou comentar aqui, diz respeito à solidariedade entre os trabalhadores.

Segundo Contardo Calligaris em seu comentário na Folha de São Paulo de 29 de janeiro de 2015,

A classe operária da minha juventude, se é que ela existiu, não existe mais. No seu lugar, no filme, há uma pequena (e terrificante) classe média, que está disposta a quase tudo para preservar seu status ou para melhorá-lo marginalmente (quando você assistir ao filme, lembre-se de que mil euros são três mil reais).

Ainda nesta direção, Alysson Oliveira (do Cineweb), em 6 de fevereiro de 2015 escreveu que

(…) é sintomático que Sandra, ou qualquer outro personagem, não seja uma Norma Rae – famosa personagem de Sally Field, operária heroína que propõe uma ação em conjunto, uma greve. Ninguém aqui sequer cogita esse tipo de atitude.

O fato é que, em “Dois dias, uma noite”, os colegas de Sandra estão diante de uma escolha difícil: ou ajudá-la e perder o abono, ou prejudicá-la e recebê-lo. No filme fica claro como a solidariedade nada tem a ver com a condição social: por exemplo, dois operários imigrantes – ambos em situação econômica delicada – votam distintamente em relação à permanência de Sandra no emprego. A solidariedade, em última análise, é uma questão de foro íntimo. Neste sentido, em uma passagem brilhante da obra-prima “O homem que amava os cachorros”, do cubano Leonardo Padura, o narrador comenta sobre sua vida em um país comunista:

A verdade era que, lendo e escrevendo sobre como a maior utopia que alguma vez os homens tiveram ao alcance da mão fora pervertida, mergulhando nas catacumbas de uma história que mais parecia um castigo divino que obra de homens ébrios de poder de ânsias de controle e de pretensões de transcendência histórica, tinha aprendido que a verdadeira grandeza humana está na prática da bondade incondicional, na capacidade de dar aos que nada têm não o que nos sobra, mas uma parte do pouco que temos. Dar até doer, e não fazer política nem pretender prerrogativas com esta ação, muito menos praticar a enganosa filosofia de obrigar os outros a aceitar nossos conceitos de bem e da verdade por (acreditarmos) serem os únicos possíveis e por (acreditarmos) serem os únicos possíveis e por, além disso, deverem estar agradecidos pelo que lhes demos, mesmo que não tivessem pedido.

Os personagens de “Dois dias, uma noite” estão diante de duas possibilidades: o “dar até doer” ou a pura indiferença. A resposta do Evangelho e dos irmãos Dardenne sobre qual a melhor opção a seguir é, obviamente, “dar até doer”. Não à toa, Pedro Butcher, em sua crítica sobre o filme publicada na Folha de São Paulo de 6 de março de 2016 – ao mesmo tempo em que reclama do “coitadismo” da personagem principal -, comenta que

Os filmes dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne sempre tiveram um certo caráter religioso. Não se trata, evidentemente, de uma abordagem direta da religião, mas de um modo de ver o mundo que inclui, no arco dramático do filme, a busca pela graça e pela compaixão (…). Nunca esse caráter religioso esteve tão explícito quanto em “Dois Dias, Uma Noite”.

Não é preciso falar em Deus para ser verdadeiramente religioso, eu complementaria. Aliás, por outro lado, quantos de nós não conhecemos pessoas que usam a religião como cortina de fumaça para praticar suas iniquidades?

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